Jackon Sampaio: Stress e alienação em saúde mental e trabalho (1)
* Prof. Dr. José Jackson Coelho Sampaio
Publicado 23/05/2008 10:29 | Editado 04/03/2020 16:36
1. Apresentação do Tema e Acordo Conceitual.
Com o objetivo de tornar o tema melhor compreendido, sobretudo o modo como nosso grupo de pesquisa, o Vida e Trabalho, da Universidade Estadual do Ceará, o vem tratando, cinco termos ou expressões precisam ser definidos: stress, alienação, trabalho, processo saúde/doença e prontidão.
A síntese aqui apresentada, nesta Conferência por ocasião do encerramento da X Reunião Anual de Investigações em Saúde no Trabalho, promovida pelo Instituto Mexicano de Seguridade Social, refere-se a um processo de construção de categorias que tem sua base em Codo, Sampaio & Hitomi (1993), Codo & Sampaio (1995), Sampaio (1998), Sampaio, Borsoi & Ruiz (1998), Sampaio (2001a, 2001b) e Sampaio & Messias (2002).
Entendo stress como o processo de adaptação, desadaptação e readaptação de qualquer ser vivo a qualquer alteração do meio ambiente. Não constitui, portanto, conceito restrito ao psiquismo, embora tenha expressão psicológica, também não se restringe ao ser humano. Stress é basicamente um fenômeno fisiológico, genérico, co-natural à vida, que não explica o que lhe causou ou determinou, tampouco explica suas conseqüências singulares, específicas. Imaginemos uma falta súbita de energia elétrica numa sala. O que causou a falta de energia? Alguém desligou, por acaso, o fornecimento de energia da sala? Um acidente automobilístico danificou o sistema elétrico do bairro ou da cidade? Há uma crise energética no país gerando apagões? A falta de energia não explica o que a causou.
Agora observem o comportamento das pessoas presentes na sala, na hora que a energia falta. Uma fica muito quieta, outra grita de medo, mais uma outra sai correndo e tropeça na escuridão, alguém aproveita a situação para passar a mão nas pernas de outra pessoa. A falta de energia não explica cada uma destas conseqüências singulares, e, metáfora da nossa situação de stress, constitui uma condição resultante de muitas causas, até independentes, e que, acionadas as histórias individuais, gera um sem número de conseqüências. Fotografemos, no comportamento e nas medidas de adrenalina, por exemplo, o stress, mas a pesquisa, sobre o que o tornou possível e o que dele resultou, apenas começa neste momento. Stress designa conceito descritivo, empírico, nada explicando per si, sobretudo não justificando a panacéia explicativa no qual se tornou nos meios de comunicação de massa do Brasil, portanto no senso comum.
Entendo alienação como conceito que sintetiza as experiências de perda, de falência, das possibilidades de objetivação do ser humano, levando à ruptura aparencial entre coisa representada e representação da coisa. Alienação designa conceito genérico, interpretativo, heurístico, associado às teorias críticas, sobretudo ao Marxismo. Cada grupo social, classe ou sociedade, dentro do modo de produção capitalista, vai construir explicações (crenças, ideologias) para o que vivencia, e defesas, exitosas ou frustras, contra o fetiche das coisas e a coisificação das pessoas. A ocorrência de estranhamento e de antagonismo entre produtor e produto, criador e criatura, tem fonte nas relações objetivas de produção e distribuição de riqueza e de poder. No desenvolvimento do modo de produção capitalista, ocorrem expansão e universalização da alienação, por conta de um processo histórico que tem produzido, sucessiva e simultaneamente, vários outros processos.
O que, objetivamente, gera alienação, é divisão técnica do trabalho (especialização, separação entre planejamento e execução), assalariamento (transformação de tempo e habilidade humana em dinheiro, redução das possibilidades de consumo à quantidade de dinheiro recebido, competição entre trabalhadores pelo acesso à sobrevivência), terciarização (crescimento do setor de comércio e de serviços da economia, redução do contato entre o trabalhador e a transformação direta da natureza), burocracia (aumento dos círculos de mando nas empresas e instituições, perda da visibilidade dos objetivos do trabalho, apropriação ideológica do poder das empresas e instituições pela lógica do criar dificuldades para vender facilidades), trabalho morto (trabalho humano pretérito embutido nas máquinas, transformando o trabalhador em supervisor de equipamentos) e capital morto (capital não investido na produção de bens, mas na circulação dinheiro/mais dinheiro, especulativo).
Entre o stress, fisiológico, e a alienação, sócio-econômica, as situações concretas de expressão da vida humana exercerão seus condicionantes, levando às respostas singulares. Diante de um grande stress, na vigência da alienação própria do capitalismo, um ser humano pode matar, se matar, desenvolver um grave transtorno psicossomático, aderir a uma igreja evangélica, inscrever-se num partido político, deixar de se alimentar, alimentar-se em demasia, praticar um atentado terrorista, ou qualquer outra coisa, ou qualquer associação entre possibilidades.
Entendo trabalho como o complexo de atividades que resulta na apropriação da natureza pelo homem, revestindo-se de formas específicas a cada modo de produção e de organização social, participando ontogenicamente da construção da natureza humana. O trabalho apresenta, no modo de produção capitalista, uma dupla e contraditória natureza: concreta (atos necessários à criação de um determinado produto ou utilidade, gerando valor de uso) e abstrata (tempo socialmente necessário para a produção de uma mercadoria e forma de exploração da capacidade de trabalho dos seres humanos, gerando valor de troca).
O trabalho, portanto gera utilidade, mercadoria, status, disciplinas e relações sociais, partindo de um projeto prévio, do trabalhador, do empregador ou dos anéis administrativos, transformando-se, por sua vez, em valor de uso (identidade, bens, civilização) e valor de troca (salário, medida de equivalência para o dinheiro). A relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato, em cada momento tecnológico e gerencial específico do processo de produção, estabelece a diversidade dos ramos de produção, das categorias profissionais e das especialidades.
A título de exemplo, distinguindo “trabalho de médico’” (tudo aquilo que médico pode fazer) de “trabalho médico” (aquilo que é próprio da formação e definindo legalmente como ato exclusivo do médico), um orientando meu, em dissertação de mestrado (COSTA-LIMA, 2000), cruzou especialidades, natureza das habilidades predominantemente exigidas pelos processos de trabalho, níveis de atenção, regimes de propriedade dos serviços e regimes de contrato e concluiu pela existência de centenas de possibilidades concretas de trabalho para o profissional médico.
Saúde e doença não mais podem ser definidas de modo independente, como na Idade Média, quando eram entendidos como designando realidades distintas, de determinação sobrenatural (saúde – graça de Deus pela prática da virtude; doença – desgraça, castigo de Deus pela prática do pecado), ou como nos séculos XVII e XVIII, quando eram entendidos como designando realidades distintas, porém de determinação natural (saúde – resultado de vida regrada, equilibrada, vida moral normal; doença – resultado de vida desregrada, desequilibrada, vida moral perturbada). No século XIX, quando o positivismo médico e o desenvolvimento tecnológico exigiram uma nova compreensão de saúde e de doença, o conhecimento humano estabeleceu o paradigma do processo, com saúde e doença representando formas de expressão de uma mesma realidade, a realidade vital, tendo quantidades, medidas e pesos, a diferenciar uma das outra.
Atualmente, a dimensão quantitativa não pode mais ser separada da dimensão qualitativa da realidade e o processo saúde/doença passa a ser entendido como um processo dinâmico, particular, de expressão das condições de vida, trabalho e consumo, de uma população, qualificada em relação a uma determinada organização social. Se souber de um homem de 35 anos, programador de computadores, membro da classe média de Nova York, nos Estados Unidos, psicanalisado, que se alimenta de fast food e mora num loft ao sul de Manhattan, ou de uma mulher de 50 anos, cozinheira de restaurante industrial, membro do operariado emergente de Sobral, Ceará, Brasil, que é espírita kardecista, alimenta-se do que produz e mora em barracão sem saneamento básico na periferia da cidade, poderei, com precisão, predizer longevidade, perfil de morbidade, qualidade de vida e riscos de morrer.
Seguindo o caminho de Georges Canguilhem (CANGUILHEM, 1982), entendo que o processo saúde/doença representa as diferentes qualidades do processo vital e as diferentes competências para enfrentar desafios, agressões, conflitos, mudanças, incluindo os estados vitais e suas representações mentais. No caso do processo saúde/doença mental, tanto os estados como as representações são conteúdos da consciência, daí obrigando distinções: 1- normal/não normal, na identificação do que é habitual e freqüente, pois não é por todos terem insônia, que a insônia indicará saúde mental; 2- doença mental/alienação, na identificação de consistência, gravidade e especificidade, pois a alienação possibilita, genericamente, insatisfações, malestares e vazios existenciais, mas não pode e não deve ser confundida com os vários e complexos adoecimentos, os quais não necessariamente determina; e 3- sintoma-sinal/doença, pois aparência constitui apenas uma face da essência, podendo haver deslocamentos, e o mesmo processo, em condições diferentes, gerar síndromes diferentes, ou vários processos, nas mesmas condições, gerarem as mesmas síndromes.
Nos estudos sobre saúde mental e trabalho minha equipe tem optado por designar as síndromes, usando terminologia original de Frantz Fanon (FANON, 1968), como prontidão: prontidão depressiva, prontidão hipocondríaca, prontidão paranóide, prontidão histérica, por exemplo. Se obtenho, com questionários e análise estatística, o resultado de 20% de depressivos numa população, necessito, imediatamente, qualificar que depressão é esta: característica de personalidade, reação a perda existencial, sintoma de doença orgânica, sintoma de doença mental, doença mental de natureza neurótica, doença mental de natureza psicótica? Deste modo, que depressão, hipocondria, paranóia e histeria são estas que fotografei?
Daí o uso da palavra prontidão indicar uma atitude de tensão permanente, um estado de vir-a-ser imediato, uma situação em que tudo esteja pronto para acontecer, carregada de aspereza, de dúvida, de ambigüidade, de culpa, de hostilidade difusa e ainda sem objeto definido, com o indivíduo vivendo sob a maldição de uma espada invisível que, ameaçadora, penda sobre sua cabeça. Destaque-se que o objetivo de nossa linha de pesquisas não é rastrear e compreender a doença mental organizada, mas o sofrimento psíquico que desqualifica o quotidiano e pode, violentado e mal tratado, enquadrar-se posteriormente na forma de doença. A situação descrita não indica, necessariamente, o desenvolvimento de uma doença, o que ocorrerá dependendo do modo como for explicada e cuidada.
Entre os vários estudos que conduzimos, dois deles, o primeiro como co-orientador e o segundo como autor, podem servir de contraponto às questões teóricas já colocadas.
2. O Caso dos Trabalhadores de Enfermagem. Discussão extraída de resultados da Dissertação de Mestrado de Isabel Cristina Ferreira Borsói (BORSOI, 1993).
A pesquisa de campo foi realizada em cinco serviços de um grande hospital universitário público, com 288 trabalhadores de enfermagem, e ela permitiu concluir que os trabalhadores podem desenvolver determinados modos de sofrimento psíquico com base em aspectos específicos ou genéricos da profissão.
Assim, por exemplo, o que referimos como prontidão paranóide pode estar relacionada à dinâmica de controle que muitos trabalhadores possam ter sobre as atividades que realizam. A lógica paranóide está fundada no sentimento persecutório por algo que se sabe existir, mas não se sabe como e quando. Esta dinâmica é experimentada principalmente por profissionais que detenham maior controle sobre o que realizam, o que, ao mesmo tempo, lhes deixam mais propensos a perdê-lo em decorrência de algum deslize ou acidente. Aqui há dois aspectos a considerar: primeiro, o nível de responsabilidade do enfermeiro, na medida em que responde pelo andamento e ocorrências de um plantão hospitalar; em segundo, a realização de procedimentos técnicos que envolvam maior risco imediato para os clientes e, neste caso, as tarefas são de responsabilidade de técnicos de enfermagem. Para estas funções, guardando-se as especificidades dos serviços, o que pode aparecer como mais tensiogênico é o temor do erro ou do acidente. A pressão sofrida é derivada diretamente do tipo de tarefa realizada. Um erro na administração de algum medicamento, por exemplo, seja por troca ou por alteração na dosagem, pode lesar um cliente ou até levá-lo à morte, e frente a isto o controle escapa das mãos do trabalhador, que fica à mercê do sistema de punição da administração do hospital. Ao trabalhador resta remoer a culpa pela conseqüência do erro e aguardar decisões sobre seu destino. A prontidão paranóide constitui-se em doloroso modo de autovigilância, no sentido de evitar a perda de controle, a culpa e a punição externa.
Enquanto lógica, a prontidão depressiva parece estar relacionada a características específicas do trabalho de enfermagem, que é a possibilidades de vinculação afetiva e de perda, que obriga o trabalhador a simular e elaborar rompimentos afetivos, sucessivamente, a cada alta, crise, piora, recidiva ou morte de cliente. Na medida em que o sentimento depressivo tende a ser menos freqüente em trabalhadores mais velhos, é possível que, com a experiência, o trabalhador aprenda a se poupar mais, modificando o modo de ver o trabalho e percebendo nele aspectos mais genéricos e característicos da profissão. Se afetiva muito, ele sofre demais a cada perda, mas se des-afetiva, perde a capacidade de vínculo, de ser acolhedor e continente das necessidades do outro. Mas a reação depressiva gradativamente parece dar lugar a respostas, a constrangimentos mais imediatos e mais atemorizadores. De reação primária, a depressão passa a ter sentido secundário, dando a impressão de que o trabalhador, quanto mais experiente, menos vulnerável fica ao sentimento de perda. O estabelecimento de fortes vínculos afetivos parece não ser mais a principal mediação entre o trabalhador e o cliente. A técnica assume papel fundamental nesta relação e o vínculo pode ser instrumento necessário, porém secundário. A introjeção, por parte do trabalhador, do caráter técnico da profissão inaugura a possibilidade de conflitos em relação aos vínculos com o paciente, abrindo espaço para outras formas de reação psíquica que tenha esta lógica como base.
A relação entre cliente e trabalhador, entretanto, não é marcada apenas pela dinâmica controle/perda de controle ou pela dinâmica afetivar/desafetivar, onde repulsa e atração, sentimento e racionalidade, identificação e desidentificação convivem conflitivamente, é também marcada pela consciência permanente da existência de ameaças concretas à saúde do trabalhador, onde a hipocondria pode ter lugar. A tendência hipocondríaca parece se revelar predominante entre os trabalhadores de enfermagem, independente da função que ocupam. Pode estar relacionada a alguns aspectos: condições de trabalho num hospital que, por melhores que possam se apresentar, oferecerão sempre algum risco ou ameaça à saúde do trabalhador; o cliente, objeto de intervenção da enfermagem, é espelho da fragilidade humana, impondo ao trabalhador a visão constante da doença e da morte como condições inevitáveis do processo da vida; o conjunto de saberes, sobre a morbidade e seus processos, que o trabalhador traz consigo, facilitando e qualificando diagnósticos acerca dos sinais do próprio corpo; e o acesso fácil a drogas lícitas. A resposta hipocondríaca pode surgir como alerta a riscos concretos ou fantasmais de adoecimento, com a atenção voltando-se para o corpo, um como um modo de assumir a própria fragilidade e também de tentar proteger-se.
É preciso cuidar do próprio corpo, estar atento aos seus sinais e sofrer abstratamente, para não cair no sofrimento concreto que determinados aspectos do trabalho podem impor. O drama dos afetos parece tornar-se apenas o pano de fundo do problema, na medida em que se define a partir de contradições básicas da profissão de enfermagem. Ao contrário da reação depressiva, o perfil hipocondríaco é mais marcado entre os trabalhadores mais velhos, isto é, entre os que detêm maior experiência de trabalho. Aprenderam a se defender da depressão a partir do conhecimento das mazelas da profissão e dos riscos concretos que ela pode oferecer e caíram no simulacro, na dramatização histriônica da dor e da perda em lugar das reais. A depressão aparece como uma reação mais específica de trabalhadores com menos tempo de experiência e que ainda lidam com sentimentos imediatamente transpostos do seu cotidiano para o trabalho, sentimentos contra os quais ainda não estruturaram defesas.
É evidente que organizar um modo ou outro de sofrer tem também o concurso de características individuais e respondam, com modos próprios, aos constrangimentos do trabalho. Assim, pode ser que características individuais os tornem mais propensos a responderem numa direção ou noutra, quando estruturam determinada forma de sofrimento, e o fazem tendo como base o que se apresenta como mais conflitante e angustiante. Neste sentido, o trabalho aparece como desencadeante de problemas psíquicos. Nos casos anteriores, o trabalho aparece como estruturador de modos específicos de sofrimento.
O stress como mecanismo de equilíbrio do organismo e o burnout como modo expressão e até defesa do stress não delimitam e não definem formas de sofrimento, não dão conta, portanto, de explicar o que pode estar ocorrendo no psiquismo dos trabalhadores. O stress e o burnout têm aparecido na literatura como sintomatologia complexa, difusa e pouco qualificada e é possível ler sintomas paranóides, depressivos e hipocondríacos nestas categorias genéricas. Do mesmo modo, sofrimento psíquico pode se referir a uma variedade de formas de sofrimento, sem definir modos de expressão ou lógicas específicas. O que queremos apontar é que existem dinâmicas psicológicas que podem ser construídas de maneira a expressar dinâmicas do cotidiano do sujeito, modos de sofrer que têm como base modos de viver a condição humana, aprendidos ou impostos na infância ou na fase adulta, neste caso, no trabalho.
Se identidade é metamorfose, a saúde mental também pode sê-lo e a doença mental ou o sofrimento psíquico faz parte desta dinâmica do viver humano. Se assumo a profissão de carpinteiro ou de digitador, vou construir a identidade também de acordo com o que estes trabalhos proporcionam: vestir, falar, fazer amigos, tempo e espaço de lazer, tempo de exposição aos filhos e o reconhecimento de pai, filho, marido, amigos, como carpinteiro ou digitador. Se a identidade pode ser construída a partir do modo como o indivíduo vive, se relaciona, trabalha, e se expressa de maneira a determinar outro modo de vida, relações sociais e trabalho, a saúde mental pode seguir curso semelhante, na medida em que faz parte de cada indivíduo concreto tanto quanto o que o torna diferente e igual aos demais. Então, se podemos falar de modos específicos de ser e de estar no mundo, podemos falar também de modos específicos de sofrer este ser e este estar no mundo.
Os termos paranóia, depressão e hipocondria são classificações antigas existindo antes mesmo que a Psiquiatria e a Psicanálise se transformassem em disciplinas consolidadas. Estas classificações são portadoras de forte caráter simbólico e guardam, como a expressão “doença mental”, o perigo do rótulo, da segregação, da classificação mecânica de determinado conjunto de sintomas, do preconceito. Precisamos ter muito cuidado com estas palavras e nossos resultados não tinham a pretensão e não nos permitirem precisar diagnósticos ou classificar determinados grupos de trabalhadores como portadores desta ou daquela doença mental. O que estamos afirmando é a possibilidade de haver determinadas tendências a modos de sofrimento psíquicos que apresentam estas lógicas.
Depressão, hipocondria, paranóia, histeria, antes de serem nomes de sintomas ou doenças, são lógicas comportamentais. Existem modos de sofrimento psíquico ou de expressão da doença mental com lógicas mais ou menos específicas, construídas durante a vida do sujeito, marcadas pelos momentos significativos, positivos ou negativos, que ele possa viver, e entre estes momentos está o trabalho.
Freud revolucionou a Psicopatologia ao apresentar o modelo dinâmico do psiquismo, demonstrando que não é a soma de sintomas que qualifica um modo de doença mental, mas é a lógica de organização do psiquismo que se manifesta como saúde, neurose ou psicose. De qualquer modo, o sofrimento psíquico se expressa de acordo com lógicas mais ou menos específicas e construídas pelo próprio sujeito. E como se trata de dinâmicas e lógicas, e não de sintomas pontuais e processo linear, o modo de sofrer pode ser estruturado em determinados momentos da vida, relacionando-se, portanto, a cada momento histórico, com o que o indivíduo faz para sobreviver.
Estamos apontando possíveis relações entre saúde mental e o modo como os indivíduos trabalham para sobreviver. Acreditamos que um dos pecados fundamentais da Psiquiatria foi não tomar o indivíduo enquanto produtor da própria vida, restringindo-o ao espaço do corpo e ao âmbito da reprodução. Do mesmo modo, a Psicanálise, apesar de ter contribuído com um novo paradigma da doença mental, concebendo o psiquismo como dinâmico e a expressão de sofrimento não mais apenas como sintoma, foca a vida do indivíduo no contexto familiar e seu romance neurótico, reprodutivo, e no âmbito da representação. Freud chega a admitir a possibilidade de relação entre trabalho e neurose e o faz porque este problema já participava do pensamento de sua época. Entretanto, Freud fica apenas na constatação. A literatura contemporânea vem discutindo o problema trabalho e saúde mental, porém, na maior parte das vezes, restringindo-se, também, à constatação. Validam-se instrumentos, replicam-se estudos, diagnostica-se descritiva ou analiticamente, mas não se explica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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José Jackson Coelho Sampaio é professor e colaborador do Vermelho/Ce