Festa de Esperança sem Felicidade

Ao comemorar 80 anos, ela sente a falta de uma das cinco irmãs cearenses que não virá à capital porque adoeceu de tristeza. Em compensação, já chegaram a Brasília Fé, Caridade e Luz

A missa será na Paróquia Dom Bosco, no Núcleo Bandeirante. A igreja é famosa. Foi lá que padre Roque escreveu a história de várias gerações e, sem imaginar, a história da própria cidade. Vai ser noite de São João. Nesse dia, 24 de junho, Esperança comemorará 80 anos. A família inteira se prepara para a ocasião. Há muito tempo não se fala em outra coisa. Depois da missa, todos irão a um restaurante na Asa Sul. A casa foi fechada especialmente para o evento. Esperam-se mais de 140 pessoas. Detalhe: basicamente só a família.
 
 


Os 80 anos de Esperança foram pensados desde que ela completou 70. E o povo do Ceará, terra natal da aniversariante, já chegou. Veio a Fé, irmã mais velha, 82. De tão danada, enquanto não chega o dia da festança, Fé foi bater perna em São Paulo. Fé adora passear. Sempre foi assim, desde novinha. Fé é decidida, não tem medo das coisas e, como mais velha de todas, virou a conselheira.


 


Esperança, com a irmã Caridade, aguarda ansiosa o dia do aniversário: 24 de junho, que será celebrado com missa no Núcleo Bandeirante e jantar no Plano Piloto
 


Veio também a Caridade, 79. Chegou junto com Fé, que tentou carregar Caridade para São Paulo, antes da festa, mas não conseguiu. Em 24 de junho, só faltará mesmo a Felicidade, de 76 anos. Essa não vem nem com reza. Em 1998, nos 70 anos de Esperança, ela veio, mas agora nem adiantou insistir. Não teve quem fizesse a caçula das quatro irmãs viúvas arredar pé da decisão. Nem Fé, a quem Felicidade obedece de olhos fechados e mantém o o respeito de irmã mais velha.


 


Mas o que será que aconteceu com Felicidade, minha gente? “Felicidade anda numa tristeza sem fim. A depressão tomou conta dela de uma maneira que nem sair mais de casa ela gosta. Começou com a morte do marido, há muitos anos. Depois, com a morte dos nossos pais. Na juventude, era costureira de mão cheia. Também foi professora, tomava conta de casa como ninguém. Agora, parece que perdeu o gosto pelas coisas, não se anima mais com coisa nenhuma”, lamenta, entristecida, Caridade.


 


Doidinha de saudade e se sentindo impotente diante da situação da irmã, Esperança, a aniversariante, admite: “Felicidade vive uma vida sem vida”. Caridade continua: “Tá de um jeito que ela só conversa se a gente pergunta alguma coisa. Eu não sei como Felicidade vive assim…” Pois bem, na casa de Esperança só faltará mesmo Felicidade, que ficou em Amontada, perto de Itapipoca (CE). E o olha que Fé tem tentado. Ligou, pediu, implorou. Nada.


 


Esperança, a dona da casa, fez até uma carta. Felicidade nem respondeu. Caridade, que mora mais perto, em Icaraí de Amontada, dia antes da viagem para Brasília, foi pessoalmente à casa de Felicidade. Quis convencer a caçula para virem juntas. Explicou o tanto que Esperança ficaria feliz. Falou como o passeio lhe faria bem. Que estar junto com toda a família poderia lhe trazer dias mais felizes.


 


Fé, minha gente, se destabocou de Fortaleza, onde mora, até Amontada para trazer a irmã. Nada. Felicidade entristeceu tão severamente, que a família toda tem sofrido junto. “Nós sempre fomos muito unidas. A vida toda. Seria tão bom se a Felicidade estivesse aqui”, lamenta, mais uma vez, a aniversariante Esperança, ex-professora, 11 filhos, 25 netos e oito bisnetos. “Essa união toda foi a maior lição de vida que nossa mãe nos deixou”, emenda Caridade. A filha, Égila Maria Sampaio, que também veio do Ceará para a festa, entrega, às gargalhadas: “Quando elas se encontram, parece um bando de papagaio. É tanta coisa pra conversar, tanta história, que a boca nunca fica fechada”.


 


Nem sempre foi assim


Quarta-feira, 16h. Na sala da casa da miudinha Esperança, no Núcleo Bandeirante, a prosa está apenas começando. Ela recebe a visita com um simpático beijo no rosto. Lembra beijo bom de mãe, de avó, de alguém realmente especial. O abraço é caloroso. Aparentemente frágil, Esperança é uma rocha. Conduziu a família com pulso e ao mesmo tempo generosidade. Aos 80 anos, a vitalidade, a lucidez e a força na voz impressionam. Esperança é mulher que a vida foi fazendo forte. Caridade está elegante, usa até um colar que imita pérola.


 


Fé, em São Paulo, por telefone e com uma risada saborosa, confessou: “Tô aqui, meu filho, batendo perna. Adoro passear. Mas chego aí domingo. Essa festa dos 80 anos de Esperança vai ser boa demais”. Detalhe: Fé viajou em companhia da irmã Luzester, de 77 anos, que também mora no Ceará. Em casa, é chamada apenas de Luz. O nome foi uma inspiração de Madalena, a mãe católica apostólica, em homenagem à luz do Divino Espírito Santo.


 


E a prosa continua. Na sala, ao lado de uma filha, Esperança conta que se casou aos 16 anos. Caridade intervém: “Eu, com 22 anos”. Cheia de bom humor, Esperança provoca: “Pra época, já era velha, né?”. E Fé também tardou a se casar. Só subiu ao altar aos 29 anos. Esperança explica: “Como irmã mais velha, ela se sentia responsável por todas nós. Por isso, foi a última a se casar”. Danadinha mesmo foi Felicidade. “Ela foi a um casamento lá em Amontada e, no meio da festa, fugiu pra se casar, em Fortaleza. Não tinha nem completado18 anos. Teve cinco filhos”, conta Caridade.


Oitenta anos de Fé: última vez que Felicidade foi à festa



A preocupação com a tristeza de Felicidade é tanta que a família a levou ao Rio de Janeiro para uma consulta com um especialista. A depressão não passou. De tudo já tentaram. Oração, terço, novena. Católicas fervorosas, não faltam à missa. Nem as preces têm adiantado muito. Felicidade entristeceu de vez. Esperança tenta argumentar: “Todas nós passamos por perdas de marido, filho. Nem sempre a vida foi alegre pra gente, mas tentamos superar as amarguras. Só Felicidade não consegue”.


 


Caridade ainda tem uma carta na manga para trazer a irmã à vida: “Combinamos fazer festa toda vez que uma de nós completasse 80 anos. Ano que vem sou eu. Como moro pertinho da Felicidade, acho que ela vai….” Se Caridade não conseguir, caberá à Fé, a mais velha e a quem todas obedecem, a difícil missão de buscar Felicidade e levá- la à casa de Caridade. Nesse instante, no meio da prosa boa, Raida Teles, filha de Esperança, conta, emocionada, a preocupação da mãe com a família e com as irmãs: “Ela é bondosa de verdade. Nessa noite, acordou escondidinha e foi cobrir a tia Caridade. Faz isso até hoje, com todos nós…” A aniversariante, comovida, explica: “Tadinha, lá no Ceará a Caridade não tem costume desse frio todo, não, minha filha”.


 


E o melhor presente que Esperança gostaria de ganhar nos 80 anos?
Sem hesitar, ela responde, com os olhinhos brilhando: “Muita vida, para ficar junto das pessoas que gosto”. E lembra, com seu jeitinho todo especial, fazendo cara de menina sapeca, o velho dito popular: “Eu sempre aviso: 'A esperança é a última que morre'”. Risada geral naquela sala onde a prosa contagiou todos. Só faltou mesmo a Felicidade, minha gente, que não veio por conta de uma tristeza infinda.


 


 


Fonte: Correio Brasiliense