Mangabeira Unger: Brasil tem chance histórica de parceria com os EUA

Por Bob Fernandes, da Terra Magazine
No dia em que Barack Obama toma posse como 44º presidente dos Estados
Unidos, este blog de Terra Magazine conversa com o brasileiro que,
seguramente, mais conhece o que pensa, e como pensa, o homem que começa
a

– Ele, entre outras cadeiras, teve um desempenho notável em um curso que eu dei sob o título “Democracia realizada”… O presidente eleito é um homem excepcionalmente inteligente. Muito sereno como todos estão vendo. Mas, ao mesmo tempo, muito aberto.

Roberto Mangabeira Unger, há quase 40 anos professor em Harvard, membro da Academia Nacional de Artes e Ciências do Estados Unidos, autor de mais de uma dezena de livros, em outubro de 2007 tornou-se ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos do governo Lula. Ao definir a si mesmo, o professor Mangabeira termina por dizer algo mais quanto ao caráter e perfil do ex-aluno Barack Obama:

– Ele é uma pessoa muito diferente de mim. Eu tenho interesse em doutrinas e uma dialética de contraste. Ele exemplifica muito a atitude americana de descontar o envelope doutrinário e as esperanças radicais e buscar o resíduo pragmático imediato.

Que rumo podem tomar o presidente dos Estados Unidos e seu governo?

Mangabeira Unger, que há pouco esteve em Washington conversando com integrantes do governo de transição de Obama, é rápido na definição:

– A minha previsão é que o presidente tenderá a atender entre o horizonte programático circunscrito a seus colaboradores e as demandas teimosas e rebeldes de um país inconformado embaixo, que fervilha…

Na entrevista que se segue o ministro de Assuntos Estratégicos do Brasil defende a parceria entre Brasil e Estados Unidos em ações e setores onde haveria espaço para tanto, e é enfático num ponto:

– O Brasil é quem deve propor um conjunto de iniciativas aos Estados Unidos…

Leia a entrevista.

Terra Magazine – Antes de qualquer coisa, uma curiosidade, acho que natural, de todos que sabem que o senhor foi professor de Barack Obama em Harvard. Quem era esse aluno que a partir de hoje preside o país mais poderoso da Terra?
Roberto Magabeira Unger – O presidente eleito é um homem excepcionalmente inteligente. Muito sereno como todos estão vendo. Mas, ao mesmo tempo, muito aberto. É uma pessoa muito diferente de mim. Eu tenho interesse em doutrinas e uma dialética de contraste. Ele exemplifica muito a atitude americana de descontar o envelope doutrinário e as esperanças radicais e buscar o resíduo pragmático imediato.

Ele era aluno de que cadeira?
Ele, entre outras cadeiras, teve um desempenho notável em um curso que eu dei sob o título “Democracia realizada”, que, aliás, depois veio a ser o título de um dos meus livros. Agora, eu acho que é um equívoco focar só no novo governo do novo presidente.

Roberto Mangabeira Unger

O senhor conhece os atores, conhece os personagens dessa história que tá se desenrolando, a partir de hoje do ponto de vista prático… há mais de um ano no governo do presidente Lula, o senhor esteve conversando com alguém da equipe de transição de Obama, não sei exatamente com quem foi, então te pergunto: o que se pode esperar e o que se pode querer?
Eu vejo uma imensa oportunidade para o Brasil de construir com os Estados Unidos um tipo de engajamento crítico que nunca teve até agora.

O que seria um “engajamento crítico”?
Uma ação que ajude a transformar tanto Estados Unidos quanto o Brasil. Há muito tempo eu sustento que o Brasil é o país do mundo mais parecido com os Estados Unidos, embora essa semelhança não seja reconhecida em qualquer um dos dois países.

Pela origem, também, de europeus, pela miscigenação…
Comecemos pelos fatos elementares. São dois países de tamanho quase idêntico. Multiétnicos. Formados pela mesma base de povoamento europeu. São os dois países mais desiguais; Estados Unidos entre os países ricos, e Brasil dos países grandes em desenvolvimento. Paradoxalmente, nesses dois países muito desiguais, a maioria das pessoas comuns continua a entender que tudo é possível. São países que fervilham de vitalidade e energia. Muitas vezes considerada dispersa. Os Estados Unidos estão na busca de uma seqüela ao projeto de produção do século passado, um projeto que atenda os interesses da maioria trabalhadora, inclusive e sobretudo da maioria trabalhadora branca.

Certo…
Um dos pressupostos do longo período de ascendência conservadora dos Estados Unidos nas últimas décadas foi o malogro do Partido Democrata em construir uma alternativa dessa ordem. E nós no Brasil estamos a busca de um novo modelo de desenvolvimento que transforme a ampliação de oportunidades econômicas e educativas no próprio motor do crescimento. São duas buscas convergentes.

E o que, do ponto de vista prático, poderia ser feito?
O que eu cito que deveríamos fazer é propor aos Estados Unidos um conjunto de iniciativas exemplares a serviço da ampliação de oportunidades para aprender, para trabalhar, para produzir. Deixando de lado as variações ideológicas e os vocabulários doutrinários e focar as inovação concretas, exemplares e sugestivas.

Nos dê exemplos objetivos…
Eu vejo três áreas especialmente propícias para a esse propósito. Primeiro, os agrocombustíveis, porque o Brasil e os Estados Unidos são os dois países mais importantes nessa área. E dois focos nesse trabalho. Primeiro, organizar o mercado mundial de agrocombustíveis e transformá-los em verdadeiros commodities, porque eles ainda não são. O segundo foco é trabalhar nas bases científicas, nos instrumentos tecnológicos dos agrocombustíveis, sobretudo os chamados de segunda geração.

Em segundo lugar…
…a segunda área propícia é a educação. São dois países muito grandes, muito desiguais e de regime federativo. Em países com essas três características há sempre o problema de reconciliar a questão local das escolas nos estados e municípios com padrões nacionais de qualidade. A qualidade da educação que uma criança recebe não deve depender do acaso do lugar onde ela nasce. Nós aqui no Brasil estamos tentando construir um procedimento para associar os três níveis da federação em alguns conjuntos, portanto um federalismo cooperativo, para socorrer e consertar redes escolares locais defeituosas que estão abaixo dos patamares mínimos aceitáveis. Se necessário faremos sozinhos, mas se pudermos fazer com os Estados Unidos, é muito melhor.

Ok… e a terceira área?
A terceira área é a economia. O soerguimento das pequenas e médias empresas para levá-las mais próximas da fronteira tecnológica e das práticas avançadas. Esse é o setor mais importante das duas nossas economias. E agora a qualificação dessas empresas adquire uma importância extraordinária no contexto da crise financeira internacional. O que eu sinto é que nós deveríamos propor isso aos Estados Unidos.

Já há alguma perspectiva disso?
Já comecei a discutir isso…

Com quem e como foi sua conversa?
…eu tenho uma convicção de que o presidente eleito estará muito aberto a isso. A minha idéia é que o hemisfério ocidental deve ser um grande espaço de experimentalismo democrático. E isso a nós nos interessa e interessa aos Estados Unidos escapar da idéia que tem que escolher entre retirar-se do mundo ou impor ao mundo uma fórmula institucional excludente. Agora há uma segunda frente que podemos abrir com os Estados Unidos que converge com essa das iniciativas institucionais exemplares.

Qual seria?
É a construção de respostas à crise financeira internacional. Até agora o debate do mundo, dentro e fora do G20, tem sido dominado por duas preocupações relativamente superficiais: a necessidade de regular os mercados financeiros e a necessidade de adotar políticas fiscais e monetárias expansionistas. Há três temas subjacentes que são muito mais importantes. E sem enfrentá-los, o que fizermos com os temas superficiais não funcionará.

Quais são estes três temas?
Primeiro, enfrentar e superar os desequilíbrios estruturais na economia mundial. Entre os países superavitários em comércio e poupança, a começar pela China, e os países deficitários em comércio e poupança a começar pelos Estados Unidos. Segundo: entender a regulação dos mercados financeiros como apenas a ponta de lança de uma reconstrução das relações entre as finanças e a produção. Do jeito que se organizam hoje no mundo as economias de mercado a produção em larga medida se “autofinancia” com base nos lucros retidos das empresas. Para que serve então todo aquele dinheiro que corre nas bolsas?

Para que serviu até aqui?
Teoricamente é para financiar a produção. Na realidade em geral não é. Então nos tempos de bonança as finanças pouco servem e quando explode uma bolha especulativa ameaça a economia real. Quer dizer, o sistema financeiro é indiferente para o bem e eficaz para o mal. Isso não tem que ser assim. A crise é oportunidade para reorganizar.

E o terceiro tema?
O terceiro tema subjacente é a redistribuição da renda e da riqueza. Todo mundo admira nos Estados Unidos a construção na segunda metade do século XX de um mercado de consumo de massa. Mas como pode haver um mercado de consumo em massa sem a redistribuição da renda e da riqueza?

Que inexiste…
Pelo contrário. Nos Estados Unidos houve uma violenta concentração de renda. Uma das maneiras que explica essa mágica é a supervalorização fictícia dos imóveis. É a principal fonte de poupança dos americanos e serviu como lastro para uma alavancagem exuberante das pessoas físicas. A democratização da propriedade substituída por uma democratização fantasmagórica de crédito. Agora que isso…

Acabou…
Se tornou menos viável… É preciso enfrentar o tema que foi suprimido ou negado lá atrás no século XX.

Certo…
Então, vamos juntos com as iniciativas exemplares, a qual me referi antes, construir junto com os Estados Unidos uma resposta mais séria. E aí todos os contenciosos pré-existentes se tornarão menos suscetíveis

Ministro, do ponto de vista objetivo, a conversa com equipe de transição foi com quem? O que se tratou?
Não…. isso eu não vou falar agora.

… mas essa conversa já existiu…
…já, mas não vou dizer com quem eu falei e com quem eu não falei…

… mas existiram as conversas…
…eu estive em Washington e conversei com muitas pessoas. O presidente eleito (Barack Obama) tomou corretamente a posição de que os Estados Unidos têm um presidente de cada vez. E que os membros do novo governo só devem dialogar depois de estarem no governo.

Uma última pergunta…
Eu tenho uma posição peculiar porque eu conheço os Estados Unidos e tenho relações pessoais com muitas destas pessoas. Eu queria fazer uma observação sobre a trajetória do governo de Obama.

Claro…
Eles estão mais abertos a um questionamento e a um auto-questionamento do que estiveram desde a década de 30. Agora, se nós examinarmos as idéias dos colaboradores do presidente eleito, são pessoas muito experientes, muito inteligentes. Na maioria, muito mundanas e de idéias bastante convencionais. Com a notável exceção do setor de energia. Se nós procurássemos prever o rumo do governo…

Qual seria?
Seria um projeto muito bem definido em seis pontos. Primeiro, regular os mercados financeiros. Segundo, adotar as políticas monetárias e fiscais expancionistas. Terceiro, usar o poder do governo para aumentar a cobertura dos seguros privados de saúde. Quarto, fomentar as energias renováveis e assumir uma posição mais avançada na problemática da mudança do clima. Quinto, respeitar mais o multilateralismo das relações internacionais. Sexto, tirar as tropas do Iraque e colocá-las no Afeganistão.

E…
Pode parecer muita coisa em relação ao que havia antes. Mas é muito pouco em comparação ao que espera o país. A minha previsão é que o presidente tenderá a atender entre o horizonte programático circunscrito a seus colaboradores e as demandas teimosas e rebeldes de um país inconformado embaixo, que, como você está vendo ai, fervilha. O resultado dessa oscilação, desse movimento pendular, depende de um lado da política, de outro lado do pensamento. A crítica expõe a pobreza das idéias no mundo. Não basta querer reorientar, é preciso saber como.

Seu ex-aluno tem horizonte para tanto?
Ele, como eu disse, não é um ideólogo, um doutrinador. Mas ele é uma pessoa de bastante…

Praticidade…
…bastante abertura. De muita intuição na captação das alternativas. O problema é que elas surjam. É como diz no Rei Lear, nós podemos convocar os espíritos, mas talvez eles não venham (risos)…. Vamos lá. Agora, a imaginação tem que vir em socorro da prática transformadora.

Publicado em 20/01/2009