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Excomunhão em Recife: um elefante numa loja de cristais

Sob o prisma ético não há nesse caso nenhum argumento capaz de sustentar uma condenação moral à atitude dos médicos e demais profissionais da saúde nele envolvidos. A sensibilidade de sua excelência e de todos os dogmáticos de plantão em relação a esse

A ética e a sabedoria do calar-se



Einstein um dia escrevera: “Só existem duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana, e quanto à primeira não tenho certeza”. Ele a tinha, porém, em relação à segunda. Uma coisa que surpreende no ser humano não é a estupidez em si ou a possibilidade de ela manifestar-se de modos inusitados, mas seu parentesco com a insensatez. Refiro-me ao recente caso ocorrido em Recife, em que uma autoridade religiosa, incorporando ares inquisitoriais, excomungou médicos que levaram adiante a interrupção terapêutica da gravidez de uma menina violentada, tanto quanto se sabe, pelo padrasto. Trata-se de uma criança de nove anos, com apenas 33 quilos e 1,36 metro de altura, a qual não tem sequer ainda o aparelho reprodutor formado. Os médicos agiram motivados pelo risco real de morte decorrente da gravidez da menina.



Sua excelência reverendíssima, em tom medievalesco, bradou que a “lei de Deus está acima de qualquer lei humana” e que, quando uma “lei promulgada pelos legisladores humanos é contrária à lei de Deus, essa lei humana não tem nenhum valor”. Em sua visão, “os fins” – salvar a vida da menina – “não justificam os meios” – a interrupção da gravidez –, mesmo que em tal situação. Esquece sua excelência que a lei de Deus é feita pelos homens e, diferente do que alegou, a contradição nesse caso não ocorreu entre uma lei e outra, mas em sua atitude de condenar quem teve sensatez suficiente para salvar a vida da criança violentada física, psíquica e afetivamente.



O que conta aqui são parâmetros éticos e jurídicos e ambos foram respeitados exemplarmente. Em sociedades complexas e pluralistas como a que vivemos, os vários códigos morais existentes – como o de sua igreja – só têm validade se estiverem subordinados a princípios de uma ética universal e civil. Estes sim, se situam acima de todos os códigos morais, inclusive o de sua instituição. O mesmo vale em relação ao ponto de vista legal, solenemente desconsiderado por sua excelência. Legalmente há no Brasil duas situações em que há amparo para a interrupção da gravidez, o estupro e o risco de vida, e este caso incluiu as duas.



Existe no campo da ética algo de fundamental importância para não se incorrer na esclerose do dogmatismo, como aconteceu nesse caso. Chama-se compreensão, o que já era bem conhecido entre os sábios da antiguidade. Aristóteles a denominou de prudência e o cristianismo de discernimento. A compreensão é a notável capacidade de discernir com sensibilidade as situações morais. Ela indica que quando há uma circunstância moral complexa ou conflitiva tem-se de avaliá-la levando em consideração todos os seus ângulos possíveis. Somente dessa maneira pode-se dar conta de sua singularidade. O singular, no caso em questão, é a situação em que se encontra a menina, vítima de uma circunstância hedionda, cujas conseqüências custariam sua vida. 



O argumento utilizado para a condenação (excomunhão) dos médicos chama-se latae sententiae, uma pena em que, de acordo com o direito canônico, o sujeito incorre sem a necessidade de que se lhe dite sentença de modo expresso, em razão do próprio fato de cometer um delito. O suposto delito foi um procedimento terapêutico levado adiante para salvar a vida de uma menina. Sob o ponto de vista de uma ética civil e universal, e levando-se em conta as peculiaridades da situação, o argumento de sua excelência é completamente insensato e extemporâneo.  



Sob o prisma ético não há nesse caso nenhum argumento capaz de sustentar uma condenação moral à atitude dos médicos e demais profissionais da saúde nele envolvidos. A sensibilidade de sua excelência e de todos os dogmáticos de plantão em relação a esse episódio assemelha-se a de um elefante numa loja de cristais. Valeria mais do que nunca, nesse particular, o velho e sábio adágio latino: Si tacuisses, philosophus mansisses – Se tivesses calado, terias passado por sábio.  



*Doutor em Filosofia, professor do curso de Filosofia e do mestrado em educação da UPF (Universidade de Passo Fundo)