Título certo, no meio do caminho: o drama dos escritores
Ele intitulara seu romance O Mundo Coberto de Pennas, em referência às penas negras dos corvos cobrindo o chão seco, contidas no penúltimo capítulo do texto. O título para a obra de 1938 parecia-lhe justo, já que o romance falava da existência
Publicado 19/06/2009 20:15
Ele era Graciliano Ramos e seu texto, um dos maiores da literatura brasileira, inovador, entre outras razões, porque a linguagem ali apresentada vinha sem floreios, seca. Mas teria a obra se tornado eterna se seu título fosse o primeiro?
O imponderável merece a atenção dos críticos. O inglês Robert McCrum não duvida que aquilo que há em um nome, citando William Shakespeare, defina seu futuro. Em reportagem publicada pelo jornal Observer há duas semanas, McCrum sustenta que O Grande Gatsby, escrito em 1925 por Scott Fitzgerald, teria outra sorte se o americano rejeitasse a ideia de seu editor e o intitulasse a seu modo, Incidente em West Egg, sem o irônico adjetivo do título final.
1984, romance que completa seis décadas, seria identicamente estupendo se o inglês George Orwell tivesse mantido para ele seu título de trabalho, O Último Homem na Europa? E o que dizer de A Veia no Pulso, que a brasileira nascida na Ucrânia Clarice Lispector pretendia dar à sua obra finalizada em 1961, depois de dez anos de hesitações? A Veia no Pulso tornou-se A Maçã no Escuro porque Fernando Sabino, seu amigo, assim o quis.
O escritor conhecia muita coisa sobre o poder dos títulos, haja vista seu O Encontro Marcado, de 1956, e também acompanhava toda a dor que cercava a obra de Clarice. Ela não acreditava no poder desse que é um de seus mais elaborados livros, e modificou-o em diversas passagens por sugestão do amigo, que, ao fim, lamentou sua obediência.
Clarice era grande, uma maçã perfeita. E, sim, estava no escuro, “perdidinha”, como ela confessara ao escritor mineiro em uma carta. O título de Sabino evocava uma estranha natureza-morta e, por esta razão, representava com acerto a intimidade de sua autora.
Ela deixara que outro amigo da criação literária, Lúcio Cardoso, desse à sua obra de estreia um título inspirado nas construções de James Joyce, Perto do Coração Selvagem, embora, em 1944, Clarice não conhecesse o irlandês. A autora libertou-se de Cardoso ao nominar O Lustre seu segundo livro, de 1946. O autor de Crônica da Casa Assassinada não gostou do título e protestou, talvez com razão. Clarice retrucou-lhe dizendo que o título correspondia ao que ela era, “pobre”.
Outra grande amiga de Clarice Lispector, a escritora Lygia Fagundes Telles, de 86 anos, gosta de usar, como a autora de O Lustre, uma palavra “antiga” para definir o que lhe ocorre ao intitular seus livros, “inspiração”. Lygia, ao contrário de Clarice, jamais deixou que alguém desse nome a um livro seu. Ela ressalta o artifício que há em todos, mesmo os que sugerem simplicidade.
“As Meninas, que parece superficial, tem relação profunda com minha meninice”, conta Lygia. “Éramos quatro filhos, sou a caçula, e sobre meus irmãos mamãe dizia: ‘Os meninos já chegaram? Os meninos estão no banho?’ E eles já eram rapazolas! Quando fiz o romance sobre as três jovens no pensionato católico, lembrei dessa maneira afetuosa com que mamãe se dirigia a meus irmãos, e as chamei de meninas, embora nem fossem mais.”
Lygia vê algo de mágico nos seus títulos, sugestões que nascem “das coisas mais estranhas”. Antes do Baile Verde, uma reunião de contos, não corresponde à sua narrativa preferida no livro. “Helga e O Moço do Saxofone são melhores, mas como dar um desses títulos ao livro todo?”
A magia está inteira em outro conto seu, justamente conhecido pela maestria do título, A Estrutura da Bolha de Sabão. O crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes, seu marido, havia lhe dito que um “físico amigo” estudara “a estrutura da bolha de sabão” em Paris. “Mas bolha de sabão não tem estrutura, eu fazia bolhas com os canudos de mamoeiro!”
O crítico estimulou Lygia a escrever baseada nessas estruturas, que, nas mãos da escritora, tornaram-se psicologias em 1978. Somente no ano passado, um amigo médico, que cuidara de seu filho Goffredo e a ajudara pessoalmente quando ela o perdeu, em 2006, disse ser Jean Oury o autor da pesquisa. “Eu já o conhecia e em setembro ele estará no Brasil. É um psicanalista e minha narrativa tem relação com isso. Não poderia imaginar.”
O título frequentemente demora a aparecer. O escritor Cristovão Tezza só chegou àquele que daria a seu livro de 2007 na segunda tentativa. Primeiramente, a ideia era intitulá-lo O Filho Especial, já que a narrativa girava em torno do jovem com síndrome de Down. “Quando me estalou na cabeça ‘o filho eterno’, percebi que tinha achado o título exato”, conta. A escolha parece correta, já que o protagonista, o pai, é o narrador, e a ele pertence a sensação de que seu menino será eternamente uma criança, eternamente seu.
“Um título é parte inseparável do livro. Um mau título, um escorregão de texto do autor”, considera Tezza. Para seu colega Milton Hatoum, às vezes, ao encontrá-lo, descobre-se também a narrativa que se está escrevendo. “Isso aconteceu com Cinzas do Norte, cujo título só surgiu dois anos depois de eu ter começado a escrever o romance”, ele conta. “A ideia veio da cena em que Mundo faz sua obra com madeira carbonizada. O título significava muitas coisas do romance: a devastação da floresta, o desnorteio de todos e também a Amazônia, o Norte.”
Em 2000, o editor de Hatoum, Luiz Schwarcz, intitulou Dois Irmãos, que evoca outro título literário brasileiro, Os Dois Irmãos, de Oswaldo França Jr., de 1976. Milton Hatoum pensara em Filhos de Zana, mas gostou da segunda versão por trazer algo de enigmático ao texto. E os personagens talvez fossem mais irmãos que filhos.
Um título, objeto inspirado, como o quer Lygia, também pode nascer de uma atitude provocativa. Eis que Machado de Assis se torna inevitável para explicar a situação. O professor de literatura Gilberto Passos sustenta que Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, tem um intuito paródico ou dois.
“Em sua composição entrariam Mémoires d’Outre-Tombe, de François-René de Chateaubriand, livro do qual já havia, em 1848, uma tradução espanhola com o título de Memorias Postumas, e o nome de Brás Cubas, homônimo do fundador de Santos”, afirma. “Como o Brás Cubas machadiano trata de uma figura do século 19 sem importância, explica-se a dupla paródia. Não se trata nem das memórias do grande autor, político e diplomata francês, de origem nobre, nem as possíveis memórias de uma figura histórica brasileira da colônia.”