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Umberto Martins: os efeitos colaterais das medidas contra a crise

Diante da força avassaladora da crise econômica, governos e ideólogos do capitalismo resolveram abandonar os dogmas e receitas neoliberais e recorrer ao até então desprezado keynesianismo numa desesperada tentativa de esconjurar o mal. De um momento para o outro, e como num passe de mágica, o Estado passou de vilão a salvador da pátria.

Por Umberto Martins

Governos e bancos centrais derramaram cerca de US$ 9,5 trilhões nas economias com o objetivo de evitar o pior e reanimar os negócios. A preocupação com o equilíbrio das finanças públicas desapareceu.

Não deixam de ser bizarras as manifestações de otimismo com a intervenção do novo herói por parte dos representantes do capital. A ação dos governos provavelmente impediu uma depressão maior, mas não é isenta de contradições. Os fatos estão revelando os limites do Estado capitalista em confronto com a anarquia dos mercados e os efeitos colaterais adversos das medidas adotadas até agora em quase todos os países, com notáveis exceções como a China e o Brasil.

A serviço da oligarquia

O principal limite decorre da própria natureza de classes dos Estados — que, regra geral, estão subordinados aos interesses de uma oligarquia financeira perdulária e desregrada. Isto explica o fato de que a quase totalidade dos recursos mobilizados pelos tesouros e bancos centrais foi destinado à banca e aparentemente evitou a falência do sistema financeiro. As autoridades deram pouca ou nenhuma atenção ao drama da classe trabalhadora, que está pagando o grosso dos prejuízos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, os bancos voltaram a lucrar e a destinar generosos bônus a seus executivos. Os recursos do erário também foram canalizados para o mercado de capitais, de modo que as bolsas reagiram positivamente. O desemprego, entretanto, continuou em expansão. Desde o início da recessão, no final de 2007, 8,36 milhões de postos de trabalho foram destruídos, segundo informações do Departamento de Trabalho americano. O exército de desocupados já conta com um efetivo estimado em mais de 15 milhões.

Os críticos consideram que os governos teriam mais sucesso no objetivo de reativar a economia se priorizassem a ajuda aos mais pobres e o combate ao desemprego, caminho que não combina com a vocação das classes dominantes. As demissões em massa promovidas pelos capitalistas deprimiram a demanda, forçando a redução da taxa de consumo. Isto inibiu a produção, realimentou a recessão e transformou o desemprego de mero efeito em causa da crise. Medidas em defesa dos trabalhadores e do emprego poderiam reativar o consumo, o comércio e a indústria.

São também notórios os efeitos adversos das intervenções anticíclicas sobre as finanças públicas. Aquilo que é gasto tem de ser pago, mais cedo ou mais tarde. Na verdade, a conta já está sendo encaminhada aos contribuintes. Os trilhões de dólares torrados no resgate de bancos e grandes empresas resultaram, como era de se esperar, em crise fiscal generalizada.

Tragédia grega

Conforme reza o provérbio, a corda sempre rebenta do lado mais fraco. Desta vez não foi diferente. A tragédia se abateu primeiro sobre a Grécia, que por sinal foi o berço da civilização ocidental e das mais belas e apaixonantes tragédias da história. O valor da dívida pública do país (US$ 300 bilhões) é baixo em comparação com o de vizinhos como Espanha (US$ 950 bilhões), Itália (US$ 1,3 trilhões) e até insignificante em relação aos débitos acumulados pela Casa Branca (US$ 12,34 trilhões até fevereiro).

Mas a velha e admirável nação helênica é hoje um elo frágil do imperialismo europeu. Possui um PIB modesto, inferior ao estoque de débitos. Por esta e outras razões, a Grécia virou o alvo preferencial dos especuladores e agora vive dias críticos.

Os credores temem que Atenas não conseguirá pagar os juros de sua dívida e, diante da perspectiva de calote, a cúpula da União Europeia pressionou o governo social-democrata de George Papandreou a adotar medidas duras e antipopulares para reverter o déficit público. As autoridades estão colhendo como resposta o acirramento da luta de classes e a revolta crescente da classe trabalhadora, que paralisou o país em 24 de fevereiro e voltou às ruas com força na última sexta-feira (5) contra o pacote de maldades aprovado pelo Parlamento e em defesa dos assalariados.

Uma bomba relógio

A Grécia não é um caso isolado. Vários países capitalistas, especialmente europeus que formam a chamada zona do euro, estão lidando com problemas semelhantes, com destaque para Portugal, Espanha, Itália e Irlanda. O drama no leste europeu não é menor. Muitos analistas apontam também o Japão, que desde os anos 1990 padece uma estranha anemia econômica e acumulou uma dívida interna de 6,8 trilhões de dólares. A diferença é que a potência asiática nada deve aos estrangeiros, possui as maiores reservas do mundo depois da China e é, hoje, a maior credora do governo norte-americano.

Uma bomba relógio bem mais perigosa é a dívida dos Estados Unidos, que constituem a maior economia capitalista do mundo. Os apologistas do império estavam acostumados a argumentar que o débito do país, contraído em grande medida no exterior, não devia ser considerado um problema porque está denominado em dólares e teoricamente pode ser quitado com a mera emissão das verdinhas. Trata-se de uma concepção falsa, simplória e vulgar da realidade.

Ocaso de um império

Recentemente, a própria secretária de Estado do governo Obama, Hillary Clinton, revelou em público preocupação com o tema e considerou o endividamento recorde do país uma questão de segurança nacional. Em sua opinião, a dívida “limita a capacidade de garantir nossa segurança de lidar com problemas difíceis e de assumir o papel de líderes que merecemos [sic]. Acredito intimamente que deveríamos abordar esse déficit e a dívida dos EUA como um tema de segurança nacional, e não apenas uma questão econômica”.

A senhora Clinton, que protagonizou no Brasil quarta-feira (3) uma fracassada missão de convencer o governo Lula a apoiar a proposta imperialista de sanções contra o Irã, tem razão neste caso, embora talvez seja muito tarde para reverter os efeitos deletérios do endividamento, que traduz o formidável parasitismo de Tio Sam. A mania de pegar dinheiro emprestado no exterior, devido à carência de poupança interna, tornou a maior potência capitalista do globo cada vez mais dependente de países com balanço de pagamento superavitário e ricas reservas (como a China e o Japão) para refinanciar o rombo.

Os fundamentos do padrão dólar e da hegemonia imperialista foram corrompidos e cresce, em consequência, o clamor por um novo sistema monetário internacional. O dilema não será resolvido em curto prazo, ainda vai rolar por anos a fio, mas já não restam muitas dúvidas de que o mundo está presenciando o ocaso do maior e mais pernicioso império da história.