Marco Albertim: Oficina de manutenção
As ferramentas na bancada davam conta da rotina. As limas menores eram cuidadas com zelo. Os operários traziam cada um o estojo no bolso do macacão. Ninguém as pedia emprestadas; era a regra, os novatos a aprendiam na escola. Quando o desbaste sobre o aço cru deixava a superfície lisa, uma lisonja pueril se imiscuía em seus planos. Os macacões oleados pesavam mais que as fibras do tecido; nas coxas, a cor preta azeitonada entranhava-se no pano, tornando impossível removê-la.
Publicado 21/10/2011 16:57

O primeiro a chegar era o mestre; abria a porta de ferro que servia de barreira aos homens da produção. Às segundas-feiras, o bom humor era recuperado após as 10h, no lanche. O mestre engolia o sanduíche de olho nos ponteiros do relógio, e todos o seguiam no dogma do horário. O mudo cumprimento era para Otávio, ferramenteiro mais velho. Otávio, habilidoso no uso da lima, evitava a rebarba do aço polido nas estrias do macacão. A ele cabia a execução de estampos intricados; prontos, fetiches na prateleira, bólidos vivos na prensa. O mestre os mostrava como resultado de sua usinagem; na frente de Otávio, atrapalhava-se.
Antônio Ribas tinha pouco mais de um ano na fábrica; estimado por Otávio muito antes. Respeitava a hierarquia, em troca dos palpites do veterano. Resultou daí lucrosa combinação de caracteres. Ribas, aqui e ali, surpreendia com a indicação de recurso incomum na feitura de peças. Tudo de comum acordo, sem intromissão nem expropriação de idéias.
O mestre, tirando proveito da parceria, indicava Ribas para o serão na execução de peças auxiliares. Parafusos, rebites e bandejas para a instalação do estampo na prensa.
– Duzentos rebites! – espantou-se Ribas, inda que presumindo-se capaz do dobro.
– Devo ficar até que horas?
– 23h no máximo!
Galpão da produção no escuro. A única luz acesa era a fluorescente da manutenção. Tarde da noite Ribas, surpreende-se com a chegada do proprietário. Não sabe o que dizer quando vê o empertigado dono que nunca cumprimentara ferramenteiro, sobretudo peões. Descera do escritório para ter certeza de que no outro dia, quando voltasse, os rebites estariam prontos.
Para demonstrar intimidade com a plaina, Ribas segura numa das mãos o cabeçote móvel.
– Amanhã estão prontos.
O homem vira o rosto, sai sem dizer uma palavra, confiando na ordem que dera ao mestre.
Ribas terminou às 22h30. Esperou meia hora para bater o cartão. Saiu na hora combinada, para não deixar que trinta minutos escapassem do envelope de pagamento ao fim da quinzena.
Deitado na rede, imagina a namorada de mãos catadeiras nos fios de seus cabelos; o devaneio mistura-se às cismas do ofício. Nutre-se no espectro de um estampo gigante, executado por ele a partir da planilha. Ferramenteiro e macho feliz fundem-se como o aço na têmpera. O sono do operário é mais denso que o sonho. O sonho, como o carvão na forja, logo vira cinzas, some na grelha da memória. Dia seguinte, ao primeiro gole da negrura quente do café, com o juízo assentado na dura rotina, pressente o corpo fino de Heloísa, seu, no futuro que poderá advir do minguado salário.
A entrada na fábrica é ruidosa, como para avisar às máquinas que o estrépito dos metais fora autorizado.
O estampo foi instalado ao fim da tarde. O mestre e Otávio ficaram no serão para os testes. Ribas, dispensado, aproveitou para assuntar com Heloísa sobre casamento e ferramentaria. Via-se ora numa casa com pirralhos, ora industriando estampos. O desbaste exato da lima, ajustando peça sobre peça, como macho e fêmea, sem deixar brecha, onde não passem sopro nem fio de luz. Prumo nos dedos, o calo endurecendo a cova das mãos. A pinga pode tirar os pés do prumo. Otávio bebe com cálculo como o corte de sua lima; cospe no chão não, nem cheira a bêbado. Engole e se despede com aceno de mão; anda com apuro, dentro do esquadro. De manhã, senta-se na bancada com as costas para cima feito o ponteiro do relógio, sem olheiras. Não sente o fermento das horas.
– Tá na hora, Ribas. Amanhã também tenho que acordar cedo – diz Heloísa..
Otávio pediu demissão. Trabalharia até o fim do mês, para pagar o aviso prévio. Conseguira ocupação na manutenção de outra fábrica, com salário maior, pouco maior. Não teve rebuços, como de costume. O mestre tentou dissuadi-lo; desistiu porque sabia do juízo de Otávio. Ribas não gostou; os estampos difíceis que fizera, tiveram ajuda dele. Era o único a quem Ribas recorria; perguntar ao mestre era confessar fraqueza ao patrão.
A experiência de Otávio foi aproveitada pelo mestre até o último corte de sua lima no aço ranhento. Depois, Antônio Ribas foi chamado a assumir. Começaria sozinho com pequenos estampos, depois os maiores.
– Um corte a mais pode significar a morte de uma peça, e a perda de seu emprego. Tenha cuidado!
A ameaça do mestre se juntava à chance de Ribas ser ferramenteiro titular.
Fora da fábrica, Heloísa foi a primeira a saber. O casamento não tardaria. Com a possibilidade de aumento, urdiram casa asseada com o cômodo para o motim dos sexos.
Ao fim do terceiro estampo, Ribas segurava a lima como velho ferramenteiro, sentia-se assim. Os mais novos o invejavam. Ele punha-se de pé ao lado da plaina, apreciando os golpes do amolado bite no aço preso à bandeja da máquina. O movimento do cabeçote, para frente e para trás; navalha na superfície, ruído chiante, fagulhas e aço luzindo. A peça adquirindo forma. Brocas abrindo furos precisos; um milímetro a mais, a ruína de tudo. Modo trágico de arruinar a carreira do ferramenteiro.
Três meses depois, fez o primeiro estampo de grande porte.
– Chanfrou as laterais da base com a lima. Cortou matriz e macho na plaina em medidas aproximadas; deixou-os exatos com o desbaste da lima. Suara belicoso ao fim de cada golpe. O ventilador ruidoso espalhava o pó do aço. Ribas enxugava as mãos no peito, sobre as coxas.
O mestre usou o esquadro sob a luz fluorescente, não viu réstia chamuscar a lente dos óculos. Numa semana, base, matriz e macho atados em parafusos e pinos, em forma de estampo. Na prensa, o movimento vertical separando e unindo macho e matriz, moldando chapas de ferro em forma de caixas para reatores elétricos.
De madrugada o estresse. O cabeçote da plaina ruge para frente, segue como se estivesse sobre rodas, guiado por cérebro volátil; não estruge como locomotivas, mas a fumaça do motor funde-se às chispas do aço cortado. Vapor. Chiuust, chiuust, chiust. Ele abaixa-se para evitar o bite afiado sobre sua cabeça. A máquina tem o propósito de arrancar sua pele. Calor de caldeira na manutenção. O macacão é uma pasta viscosa no corpo. A máquina não está só, comanda-a o mestre, segurando a marcha. “Limou além da medida! Destruiu o estampo!” Chiuust!
O café da negra na porta da fábrica alivia. A conversa alegre dos operários distrai. Quando o último da fila bate o cartão no relógio, as máquinas, todas, estrugem como uma orquestra. Na prateleira da manutenção, o último estampo feito por Ribas; oleado, ostenta o brilho do meteorito recém-caído da abóbada eterna.
– Parece bom.
As duas palavras do mestre são para Ribas não se julgar acima de sua competência.
No galpão, serralheiros e ajudantes se misturam a vergalhões, folhas de ferro. As prensas dão estrondos de tremer o chão. Os operadores usam protetores nos ouvidos. O barulho maior vem de serras elétricas, discos de lixa desbastando excessos de solda. A pintura, separada dos fundos por combogós onde entram o sol e pouca ventilação. Uma dúzia de pintores com pistolas ligadas a mangueiras no compressor; a tinta branca espalha odor etílico. O azul-cobalto dos macacões perdera a cintilação; alguns, brancos, confundem-se com cantoneiras da mesma cor encostadas aos combogós. Máscaras nas bocas, narizes, nenhuma proteção nos olhos. Bafos de metanol das latas de solvente. Ribas e os peões sentem prazer com o cheiro, única distração.
Na forja, o forno para temperar o aço apoia-se em quatro vergalhões. Na frente, o caixão de madeira entulhado de carvão mineral; uma pá, cujo cabo pedia reforço, era usada para jogá-lo sob o gradil no interior. Uma hora de fogo e pronto, matriz e navalha temperados. Com a tenaz, Ribas as afunda na tina cheia d’água para outra vez devolvê-las ao forno para o revenimento; o tempo deve ser curto, curtíssimo para evitar que o aço seja destemperado. O contato com a água empoçada não lhe faz bem. No fim da tarde, fraqueza.
Na rede sob o teto de telhas com musgo, a febre leva ao delírio. Não é a plaina que ameaça. O calor acima de mil graus na forja arrebenta a portinhola, vomitando chamas vermelhas e azuis. O caixão de madeira é consumido pelas brasas do carvão. A cobertura de amianto desaba. Tudo devorado. Matriz e navalha reduzidas a uma massa cinzenta, disforme.
Levantou-se com restos de febre. A água limpa da tina do banheiro remoça. Queria ir pro médico. Teria dois dias de repouso.
No vidro do relógio de ponto ressurge o aço derretido nas chamas do carvão. Sossega ao lavar as peças com gasolina. O esmeril instalado na plaina as deixa luzidias, nada parecidas à massa disforme vista no delírio.
Ao fim do dia, Antônio Ribas foi à casa de Otávio. Relatou inquietações, o modo inquisitivo do mestre. Ao que ouviu:
– Ele não gosta de deixar operário sozinho. Diz que sem o seu controle, os projetos se perdem. É a forma que encontrou de dar satisfação à gerência. Procure fazer de conta que ele não existe enquanto você executa. Só em caso de muita dúvida fale com ele. Com meia dúzia de estampos feitos com prumo, ele deixa de olhar pra você como uma presa.
O casamento era adiado toda vez que o pagamento omitia horas extras. Heloísa nada dizia. Ribas sentia o braseiro nas veias dela. Acariciava a malha de sua calcinha para reiterar juras. Bolinação comprometida, o dedo inquiridor na embocadura do sexo.
Às cinco horas extras dedicadas aos duzentos rebites não foram pagas. No envelope, o vácuo do dinheiro subtraído. Antônio Ribas foi reclamar no escritório.
– Sou homem igual a você! – respondeu o queixoso ao chefe de Pessoal
– .
O funcionário o julgara impertinente. A insólita presença do operário no escritório, o macacão borrifado de óleo, impregnando o ar refrigerado. Restou esperar o envelope da próxima quinzena.
Choveu à noite. Ribas e Heloísa ficaram sob a algarobeira. Os pingos frios escapulindo das folhas, misturando-se às salivas.
Dali a dois dias teria que temperar matriz e navalha de outro estampo. Mais um troféu com sua assinatura. As horas extras seriam pagas. Os propósitos conjugais reavivados.
Com a chuva, a viração carregada de miasma entrou pelo telhado de Ribas. O lume do candeeiro estremeceu. Ele espirrou canino. Enroscou-se sob a coberta. A febre, sem pesadelos, voltou. Levantou mais cedo com o propósito de ir à enfermaria da fábrica. Foi ao Pronto Socorro. Contou a história de suas febres. O médico diagnosticou febre octana. O atestado dava licença de dois dias. Não tinha dinheiro para o remédio, mas a fábrica tinha convênio com a farmácia do bairro. Explicou ao mestre enquanto esperava o aviamento da receita. Voltou para casa. Com dois dias estava na oficina, de olho no estampo adiado.
O negrume do carvão se misturou ao suor da testa e sob os olhos. Macacão aberto e calor no peito. Temperatura dos infernos saía do forno, quentura de mil demônios! Vergava as costas para prover o forno de mais carvão. “Ai…” Nunca gemera, nem quando brocara na roça. Tomou o remédio indicado pelo médico, mas o homem não o conhecia; examinara garganta, olhos, sem nada dizer. Saudades da quixabeira da mãe; tomava só pelo costume e nada de febre alta.
O termômetro da forja está a quase mil graus. Matriz e navalha temperados. Ribas joga as peças na água. Enquanto o aço chia, senta ao lado do depósito de carvão. Tem que reabrir a portinhola para o revenimento. Resolve esperar, dar trégua. Descansa o suficiente para achar que está bem. Repõe o aço no forno; poucos minutos, pouquíssimos para evitar o destempero. Volta a sentar. O monitoramento pode ser feito a distância, e não está tão distante. As costas acomodam-se na parede. Fecha os olhos sem dormir, os sentidos atentos. Com pouco, os sentidos dobram-se sob o peso das pálpebras. Acorda com o barulho dos homens da pintura. Corre para o forno com a tenaz na mão. Matriz e navalha zunem na vermelhidão das brasas…