Cordel Umbilical: ABC da Saudade, de Joan para Idalzira e Erivan
Aqui a vida é diferente
Da vida do meu sertão
Que às vezes de repente
Me aperta o coração
Sufocado de saudade
Pensando em minha cidade
No vale do rio Salgado
Eu aqui nesse lugar
Não posso nem comparar
Com meu solo abençoado
Publicado 28/07/2015 11:47 | Editado 04/03/2020 16:25
Basta dizer que aqui
O povo é muito esquisito
Prefere comer siri
Do que carne de cabrito
Tenho raiva quando vejo
Alguém comer caranguejo
Fazendo o maior pagode
E ainda dizer pra mim
Que a comida mais ruim
Que existe é carne de bode
Como é que eu posso aceitar
Essa afronta sem medida
Alguém desmoralizar
Minha carne preferida
Desse jeito eu não acostumo
Só penso em tomar o rumo
Do meu torrão natural
Lá pelo menos o povo
Sabe que um bodete novo
É comida sem igual
Desde que aqui eu cheguei
Sinto falta do sertão
Muita coisa estranhei
Nesse longínquo rincão
É uma fala diferente
Da fala de minha gente
Um sotaque atravessado
Mas eu não posso negar
Que o povo desse lugar
É bastante animado
Embora a animação
Seja muito diferente
Das coisas lá do sertão
Das festas da minha gente
De igual só tem a vaidade
Das meninas da cidade
De vestir a mini-saia
O resto nem se compara
Que uma cerca de vara
Não se parece com a praia
Faz um tempo que cheguei
Aqui nesse Acaraú
Mas ainda não desmanchei
O diabo desse lundu
Sinto falta de vaquejada
Do vaqueiro em disparada
Correndo atrás do touro
E na hora de merendar
Pego logo a imaginar
Com um bolo chapéu-de-couro
Gosto de me divertir
É um direito que se tem
Mas eu vou lhe garantir
Aqui não me sinto bem
Eu que amo a poesia
Nunca ouvi uma cantoria
Em toda essa redondeza
E tou esperando o primeiro
Forró de bom sanfoneiro
Como Chico de Tereza
Honestamente eu lhe digo
Que tenho muita saudade
Deste meu lugar amigo
Onde me sinto à vontade
Aqui não tem a beleza
Da valente correnteza
Do riacho São Miguel
E o povo desconhece
Não dá o valor que merece
A um bom sarapatel
Igual é a fome que passa
O sofrido pescador
Sua miséria é a que grassa
Na mesa do agricultor
Porque nesse meu nordeste
A sujeição e a peste
Em todo canto é normal
O pobre do nordestino
Padece o mesmo destino
Do sertão ao litoral
Já os costumes que eu tenho
São diferentes daqui
Beber garapa de engenho
Comer feijão com piqui
Pegar uma melancia
E com a maior alegria
Devorar de cabo a rabo
E coisa melhor não há
Do que um bom mungunzá
Ou baião-de-dois com quiabo
Lamento a minha sorte
Por viver longe de casa
Tenho saudade do sol forte
Que tudo queima e abrasa
Das noites de São João
Soltar traque e foguetão
E assar milho na fogueira
Meia-noite honrar o trato
Ir dançar no sindicato
Que o forró é de primeira
Muito aqui tenho lembrado
Dos meus amigos fiéis
Mas como diz o ditado
Ficam os dedos, vão os anéis
Ainda volto uma data
Pra fazer uma serenata
Lá na praça da Matriz
Com Jorge, Robson e Zuquinha
E mais aquela turminha
Com quem sempre fui feliz
Não peço nenhum segredo
Por não acostumar aqui
Digo e repito sem medo
Lugar bom é o Cariri
É os Inhamuns e o Salgado
A ribeira do Machado
Minha terra natural
Que tem uma coisa bacana
O mel da cana-caiana
De doçura sem igual
Ouço essa gente dizer
Que o sertão é um horror
Deve ser por desconhecer
Meu querido interior
Mas não posso lhes culpar
Pois o povo desse lugar
Que se diz civilizado
Nunca comeu rapadura
Com farinha na mistura
Antes de ir pro roçado
Possuo a veia poética
Que herdei dos meus ancestrais
Mas sei que não é boa ética
Viver cantando seus ais
Porém a culpa não é minha
É desta grande morrinha
Que o meu corpo invade
E que os homens letrados
Consultando seus tratados
Denominaram saudade
Quando a noite cai aqui
Impaciente eu espero
Pelo vento aracati
Mas logo me desespero
Pois nunca ouvi o lamento
Do meu bom e amigo vento
Que todo o sertão encanta
Aqui o vento é carregado
Tem o mormaço abafado
Que da praia se levanta
Rogo a Cleto que entenda
A minha situação
E que ele compreenda
Eu não tenho a intenção
De desancar sua terra
Nem de provocar a guerra
Do Cedro com o Acaraú
Mas eu aqui vivo aflito
Sem nunca escutar o grito
Da rolinha ou da nambu
Só sabe a dor que eu sinto
Quem está longe desterrado
Este sabe que eu não minto
E que é ruim viver exilado
Sem desfrutar da alegria
E da doce companhia
De sua casa querida
De seus irmãos e seus pais
Dos seus amigos leais
Sua riqueza preferida
Tenho vontade de escutar
As orações e os benditos
Que saem sempre a cantar
Os penitentes aflitos
Tirando suas novenas
Suas rezas e trezenas
No mês das festas juninas
Que não há coisa mais bela
Que a inocência singela
Das crendices nordestinas
Uma grande animação
É ouvir o foi-não-foi
Ou escutar a canção
Comprida do sapo-boi
Que é fonte de alegria
Porque sua cantoria
É sinal que caiu chuva
O matapasto brotou
E a roça já empesteou
Da formiguinha saúva
Vou pedir um bom presente
Sei que o mesmo não falha
Quero que a minha gente
Me mande um chapéu de palha
Me mandem mel de abelha
Se possível uma parelha
De arupemba bem trançada
Mandem ainda uma cabaça
E um forte cipó de salsa
Trazendo ela amarrada
Xique-xique miudinho
Dentro de um pote de barro
Mandem fumo picadinho
Pra fazer o meu cigarro
Me mandem um acordeom
E um zabumba do bom
Por sanfoneiro aprovado
Me enviem um cabrito novo
E dêem lembranças ao povo
Deste meu torrão amado
Zombe de mim quem quiser
Que eu não vou escutar
Não ligo pro que disser
O povo desse lugar
Eu quero é voltar pra casa
Pra comer carne na brasa
Misturada com angu
E enquanto isso não faço
Do Cedro vive um pedaço
Aqui nesse Acaraú
Acaraú, 24 de abril de 1990