“A Encarnação do Demônio”: horror à meia luz

José Mojica Marins fecha sua trilogia sobre “Zé do Caixão” com filme que mescla trama policial, horror e tentativa de crítica social.

Nos anos 60 quando surgiu com suas emblemáticas obras, “À Meia Noite Levarei sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei em seu Cadáver”, em meio ao turbilhão do Cinema Novo, os filmes de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, representavam uma tentativa de se fazer um cinema centrado nas visões geradas pelas crendices populares. Um cinema fora, portanto, das discussões político-ideológicas terceiro-mundistas, próprias dos cinemanovistas, mas enraizado numa vertente nacional, que buscava um modo diferente de se fazer cinema à margem dos esquemas tradicionais. Inclusive de financiamento, de produção estruturada, o que lhe dava imensa liberdade criativa. Num cinema de bairro, nos anos 60 se podia assistir a “À Meia Noite Levarei sua Alma”, sem imaginar que ali estava uma forma de se fazer cinema distante dos padrões hollywoodianos, entretanto bem próximo do que pretendiam os cinemanovistas.
                


 


Esta aproximação encerrava-se ao se descobrir a distância estabelecida pelas propostas que os separavam. Enquanto um buscava ser popular, a partir de uma visão político-ideológica, o outro, Mojica Marins, aproximava-se do povo usando elementos do imaginário deste mesmo povo. Enquanto, no cinema de Glauber Rocha tinha-se “Antônio das Mortes” como personagem símbolo do Cinema Novo, no de Mojica Marins “Zé do Caixão” sintetizava as agruras de um país envolvido em suas crendices e no seu atraso. Um procurava superar a etapa rural, dos jagunços e cangaceiros, o outro desmistificar o universo do cidadão comum, às voltas com preceitos religiosos. Ambos personificavam, assim, uma etapa histórica do Brasil, embora germinados em propostas totalmente adversas.
               


 


Durante a etapa do Cinema Novo nenhuma aproximação foi estabelecida entre ambos. Só o pessoal do Cinema Marginal, do Udigrudi, abraçou Mojica Marins. Dentre eles, o cineasta, ensaísta e critico Jairo Ferreira, um dos defensores de um cinema experimental, distante, portanto, do cinema industrial, estilo Hollywood.  Mas, superado este distanciamento, nada mais os identifica do que o personagem-símbolo de Mojica Marins, “Zé do Caixão”. Não é um justiceiro; igual a “Antônio das Mortes” com sua carabina, projeção do western-spagheti(veja “Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha), é um desajustado, herdeiro da Hammer, produtora inglesa de filmes de terror dos anos 50 e 60. Deles herdou a capa, a cartola e os trejeitos. Um personagem do século XIX, pois sua indumentária o vincula à nobreza, a alguém que pelo menos assim pretende ser, tento adotado a vingança, a perseguição, a crueldade como meio de reparar algo de que não se tem notícia.
                 



Em “À Meia Noite Levarei sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei em seu Cadáver” havia uma identificação com a linha popular, circense, que provocava arrepios e levantava polêmicas entre o espectador mais simples. A fala, os gestos, o caminhar e, principalmente o olhar, traduziam para o ele, espectador, a ambivalência do personagem. Em preto e branco, como foram produzidos os dois filmes, prevalência uma atmosfera de terror, de sobrenatural, que causava arrepios. Diferente dos personagens dos filmes da Hammer, protagonizados por Christopher Lee e Peter Cushing, ele não precisava de mandíbulas ponteagudas ou esgarres para gerar o medo. Surgiu daí toda a mística de “Zé do Caixão”, a ponto de o ator-diretor Mojica Marins ser com ele confundido. Criador e criatura se tornaram, desde então, quase a mesma persona. Com o tempo o personagem migrou do cinema para a televisão e, depois, desapareceu; até ser ressuscitado por um grupo de fãs, responsáveis pela produção do terceiro filme da trilogia “Encarnação do Demônio”, lançado 40 anos depois de ser planejado para chegar às telas.
                


 


Quarenta anos, sem dúvida, fazem um enorme estrago em qualquer personagem, que retorna em meio às mais diversas produções de horror, terror, fantástico e mistério. Cercado de muita propaganda, ótimas críticas na mídia, o filme que encerra um ciclo, gera desconforto sem produzir medo. O desconforto vem mais das falas entoadas, teatrais, como se Mojica Marins quisesse atemorizar o espectador, antes mesmo de produzir a primeira vítima. Às vezes também se tem a impressão de que ele acha ser esta a forma de entonação, a maneira de emitir uma frase num filme de terror. A naturalidade, a fala pausada, a surpresa, estão fora de seu arcabouço técnico. Com o desenrolar do filme, começa a cansar. O grande personagem, um dos principais da cinematografia brasileira, procura movimento, cercado por discípulos, sem envolver o espectador; atraí-lo para suas armadilhas. Ele apenas tortura, grunhe, retalha corpos, atabalhoadamente.
                  


 


Isto ocorre numa tentativa de estabelecer nexos entre a trajetória anterior à sua prisão e a busca que faz agora de uma mulher para gerar seu filho, espécie de anticristo, sem projeto estabelecido. Estes nexos podem ser as projeções em longas seqüências, em que ele, atormentado, vê-se diante da mulher que, ao invés de parir um ser humano, expele baratas, tripas, tentáculos; ou na caminhada que faz ao lado do profeta (José Celso Martinez Correia) até o inferno. São os únicos momentos que ligam “Encarnação do Demônio” aos demais filmes da trilogia. A criatividade de Mojica Marins aflora, reforçada pelos efeitos especiais e os grandes planos bem elaborados. Num deles, ele surge no cemitério, caminha até as árvores, em meio às catacumbas, majestoso e desemboca no pesadelo.
                     


 


Estas alucinações não conduzem a narrativa, formando um todo que poderia iluminar a maldição que sobre ele abateu. Ele afinal torna-se um assassino sádico, torturador insano e ser inconformado por quê? O roteiro de Mojica Marins e Dennison Ramalho envereda por outros centros narrativos. Lança pistas falsas, linhas que tentam amarrar outros centros, para no final justificar toda a trama. Isso ocorre logo na abertura, quando as compridas unhas de Zé do Caixão surgem pelo vão das grades. As vociferações de Américo (Luís Melo), chefe da prisão, cheio de temores, remete à expectativa da fuga de Hannibal Lecter.  O que se vê em seguida é sua caminhada pelas ruas, depois de 40 anos, quando se espanta com a decadência urbana: menores cheiram cola e se picam num canto. Ele os vê e segue em frente. Um tipo de crítica social que o roteiro reforça ao mostrar logo à frente a execução de crianças. Enfim, a crítica social chega aos filmes de Mojica Marins, de forma explícita, o que é bem vindo.
                        


 


Logo se vê que a denúncia de extermínio de criança é o gancho para se estabelecer o antagonismo entre capitão PM, Oswaldo (Adriano Stuart) e Zé do Caixão. Ele poderá se tornar mais à frente um vingador, espécie de anti-herói zelando pela justiça terrena. E entra-se, assim, em outro tipo de filme: o policial ao estilo “Tropa de Elite”.  Não bastasse isto, outro eixo é introduzido na trama: o do padre Eugênio (Milhem Cortaz) que se ocupa de vingança. Fecha-se a estrutura de “Encarnação do Demônio”. Todos contra Zé do Caixão. Forma de tratá-lo como alguém que deve ser exterminado para reparar o mal absoluto por ele encarnado. O filme é então sobre o mal absoluto, sobre o horror, não o terror. Esta é, em suma, a contradição de ” Encarnação do Demônio”. A ação, a perseguição, intromete-se, deixando de lado o mistério, a danação, a procura que ele faz da mulher que irá gerar seu filho. Uma busca que poderia enriquecer o filme, linha esta não aprofundada pelo roteiro.
                       


 


A jovem Lucrécia (Débora Muniz) que por ele se sente atraída; quer se doar; se entregar a seu ritual; fica apagada. Uma indagação que se poderia fazer: por que uma garota classe média se sentiria atraída por um ser tão sádico? Que influência exerce o mal sobre ela que se sente inclinada a gerar dentro de si o filho de Zé do Caixão.  Nenhuma ação o explica ou a liga diretamente a ele. Ela não se retrai diante da tortura, dos atos indignos por ele praticados. Uma linha do filme que poderia antepor o lado maligno dele à sua pureza, se esta por acaso houvesse. O roteiro privilegia seqüências de tortura, de cortes de pele, de arrancar de órgãos, justificando a chancela “trash”, o horror explícito, para “Encarnação do Demônio”. Nada é sugerido, tudo é escancarado. Um modo sem dúvida de produtores, roteiristas e diretor atrair a platéia jovem, alvo do fecho da trilogia de Zé do Caixão.
                     


 


Este público, no entanto, acostumou-se nas últimas décadas, desde “A Hora do Pesadelo”, passando por “Sexta-feira 13”, “Massacre da Serra Elétrica”, e agora a série “Jogos Mortais”, por exemplo, e as produções japonesas e coreanas, a ver todo tipo de sadismo, masoquismo e torturas no cinema. Não lhes causam espanto mais corpos retalhados, órgãos pulsando; a dose que vem lhe sendo aplicada é por demais forte para ele se espantar com os de “Encarnação do Demônio”. Além disso, os filmes de Clive Barker, “Hellraiser 1 e 2”, por exemplo, têm muito mais cenas de flagelação (as agulhas nos corpos), acostumando à platéia cenas fortes. A sucessão delas na câmera de tortura de Zé do Caixão acaba se tornado meras repetições.
                    


 


Talvez derive daí o fracasso anunciado, de baixa freqüência de público em três dias de lançamento. O público jovem, hoje principal alvo dos produtores, não correu para o cinema para ver “Encarnação do Demônio”. A tentativa de atualizá-lo, pondo-o em meio ao drama urbano e incluindo a perseguição que lhe é empreendida pela PM e o frade, talvez não sejam suficientes. Tampouco inclui o viés da tentativa de se iniciar um ciclo de filme popular no Brasil, centrado numa figura mitológica do cinema e da televisão. Tinha muito sentido nos anos 60, quando Mojica Marins iniciou sua trilogia com os antológicos “À Meia Noite Levarei sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei em seu Cadáver”, opondo-se à leva de produções hollywoodianas que invadiam – e invadem – o mercado brasileiro.                               
                    


 


Contraditoriamente, a urgência de um cinema popular no Brasil continua atual, dada que essa invasão se expandiu e a concorrência hoje é muito maior, dado ao surgimento da TV a cabo, do DVD, agora BlueRay, e a baixa freqüência de público nos cinemas. Quem sabe, não surjam do ventre das mulheres engravidadas em “Encarnação do Demônio” os filhotes deste cinema popular?


 


 


“Encarnação do Demônio”. Terror Brasil. 2008. Roteiro: Dennison Ramalho, José Mojica Marins. Fotografia: José Roberto Eliezer. Direção: José Mojica Marins. Elenco: José Mojica Marins, Milhem Cortaz, Adriano Stuart, Jece Valadão, José Celso Martinez Correia, Débora Muniz, Helena Ignez e Cristina Aché.

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