“Milk”: Resgate Histórico
Gus Van Sant, diretor estadunidense, mostra como o corretor de seguros, Harvey Milk, organizou a comunidade gay de São Francisco, a partir de luta travada em três frentes políticas: de massa, legislativa e nas relações com outros segmentos sociais
Publicado 17/04/2009 19:36
Na abertura de “Milk”, o diretor estadunidense Gus Van Sant, em flashes de manchetes de jornais, prisões em bares e clubes, entradas forçadas em camburões, mostra o clima vivido pela comunidade gay de seu país nos anos 60 e 70. Numa delas, um gay, irritado por ter sua intimidade violada, atira o copo de bebida contra a câmera. E dá o exato tom da revolta contra a repressão por ele sofrida. Van Sant vai, ao longo do filme, mesclar ficção e realidade, cenas de documentários e cinejornais da época com uma narrativa linear; dividida em três tempos: o relato pós-morten do ativista gay Harvey Milk (1930/1978), a construção do movimento gay nos Estados Unidos, a partir de São Francisco, Califórnia, e as relações amorosas de Milk (Sean Penn). Em dado momento, estes níveis da narrativa se mesclam, através do uso de várias mídias, para traçar o perfil não só de Milk, mas do próprio movimento de liberdades civis nos EUA. E, desta forma, Van Sant faz jus à trajetória de observador da cena norte-americana, feita em obras como “Paranoid Park”, “Sonho sem Limite” e “Últimos Dias”.
“Milk”, no entanto, é filme de ativista, pelo que apresenta de tática política e descoberta de que qualquer luta da dimensão da organização GLBT, racial, gênero, índios e das minorias em geral, carece da existência de um movimento. Esta foi, segundo Van Sant, a escolha mais apropriada para registrar o surgimento organizado do movimento gay nos EUA. E mostra-se apropriada, pois permite ao espectador entender a força das camadas conservadoras do país, seus pilares políticos e a cobertura que a mídia lhes dá. E, por outro lado, a variedade de táticas que o movimento gay é obrigado a usar para lhes fazer frente. Elas surgem do amadurecimento do próprio Milk, corretor de seguros, que, após perder três sucessivas eleições para vereador em São Francisco, compreende que precisava estruturar melhor os gays; dotá-los de estruturas políticas para que pudessem atingir seus objetivos. Estas incluíam não só liberdade sexual, de relacionamento com parceiros, de freqüentar bares e clubes, de trabalhar em repartições públicas e em empresas privadas e ter cadeira no parlamento municipal.
Território gay tem nome emblemático de “Castro”
Numa cena crucial para este entendimento, ele, que havia adotado o visual psicodélico e rebelde dos anos 60, decide, em conversa com o companheiro Scott Smith (James Franco), retomar o antigo visual, de rosto barbeado, terno e gravata, para relacionar-se, sem chocar, com outros segmentos da sociedade. Aparentemente um recuo, dado que sua luta começa exatamente pela liberdade de comportamento, ou seja, de relacionar-se livremente com seu parceiro. O que ele e Scott fazem em frente a seu bar, tornando território gay, com o emblemático nome de “Castro”. A câmera de Van Sant registra cenas amorosas entre eles, espécie de choque elétrico na comunidade conservadora que vivia no bairro. Esta, representada pelo dono do bar Liquor, Jason Collins, é quem logo o adverte para o risco de os moradores fecharem o bar e a polícia o levar preso. É esta repressão que está na raiz do movimento liderado por Harvey Milk: o que, em princípio era uma luta pela liberdade sexual, acabou se transformando num movimento político de grandes proporções.
Van Sant mescla cenas amorosas de Mik e seus parceiros com o crescimento de sua consciência política. Enquanto Scott partilha de suas ideias, ajudando-o a estruturar o movimento; Jack (Diego Luna) vive em constante conflito consigo e com os demais militantes do movimento. Cheio de carências, ele destoa do grupo por não se sentir aceito por ele. No entanto, não procura se integrar. São instantes em que o roteirista Dustin Lance Black e Van Sant lembram que existe uma matriz sexual, comportamental e social nos jovens reunidos em torno de Milk. A maioria de classe média, trancada em seu trabalho, escola, bairro, casa, como o jovem paralítico, ameaçado de expulsão pela família, devido à sua condição de gay. Não há, segundo Black e Van Sant, como escamotear a relação entre parceiros do mesmo sexo. No entanto, eles não a deixam suplantar a necessidade da luta política. Ela se inicia em frente ao bar Castro e se estende pelas ruas, avenidas e praças de São Francisco com a gigantesca parada gay. Ambos, Black e Van Sant, entendem que o exercício da liberdade sexual decorre da conquista política. Uma lição e tanto.
Luta solitária é substituída pela ampla luta política
Como se a ilustrar isto, Milk se vale da tática do movimento afro-descendente estadunidense que, em seus primórdios, concentrava toda sua força na incipiente estrutura sócio-econômica dos segmentos sociais que o compunha. Negros só compravam em lojas de negros. Milk incita os gays a fazerem o mesmo. Um intercâmbio de influências, natural na luta das minorias e das lutas populares. Seu aprendizado obtido no dia-a-dia é feito em momentos solitários ou em discussão com o grupo de gays, alguns vindos da universidade ou de organizações sociais, como Anne Cronemburg (Allison Pill), que integra o nascente movimento. Até o momento em que entende que havia algo para além da luta solitária dos gays, distante do centro de poder: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. E então o movimento se amplia, com a participação de gays não só de São Francisco, como de outros estados, e atrai a ira das camadas conservadoras e seus representantes no parlamento.
Este é o recorte mais interessante de “Milk”, a opção consciente de Black e Van Sant de tirarem o próprio filme do gueto, das “lutas sexistas”, para o campo político. Torna o filme menos hollywoodiano e o trás para o campo mais amplo. Linha aberta por Ang Lee em “O Segredo de Brokeback Mountain”, produzido para grandes platéias, ainda que centrado apenas na relação entre dois pastores de ovelhas bissexuais nos confins gelados dos EUA. Foge também do estigma da obra que mostra a comunidade gay em ambientes obscuros, eivada de degradação e criminalidade, a exemplo de “Parceiros da Noite”, de William Friedkin. Há, reforçam diretor e roteirista, outro ambiente nesta comunidade, acuada pelos costumes da sociedade judaico-ocidental cristã, sempre disposta a escamotear suas neuroses, degradações e obscurantismo. Bergman, em “O Silêncio”, ilustra bem o tipo de pessoa por ela criada. Duas irmãs, em viagem, param numa cidade. Uma delas, jovem, Esther (Gunnel Lindblom), enquanto espera o momento da partida vaga pela cidade; a outra, Anna (Ingrid Thulin), fica com o filho no hotel, agonizando.
Conservadores temem contato dos filhos com professores gays
Atormentada pela demora de Esther, ela começa a se inquietar. Quando a outra, enfim, retorna, emerge toda a sexualidade que ela não consegue mais reprimir. Ciúme, violência, demência, ameaças pontuam seu comportamento. Elas se relacionam amorosamente; Anna, no entanto, não quer dividi-la com o parceiro que, por ventura, Esther possa ter. Tudo, porém, se passa entre quatro paredes, no quarto do hotel, portanto em caráter privado. Em “Milk”, pelo contrário, as relações burguesas, fechadas, reprimidas, ganham as ruas, com suas cores, jeitos e tendências. O que, certamente, incomodava líderes conservadores, como Anita Bryan e o senador John Briggs (Denis O´Hara), preocupados, pelo que dizem, com a preservação da família e a sedução de seus filhos pelos professores gays. “Nossa posição, diz Briggs, é proteger nossos filhos desses gays pervertidos e pedófilos, que recrutariam nossos filhos para participar de seu tipo de vida”.
Neste ambiente hostil, em plena ressaca dos movimentos civis, pós-guerra do Vietnã, o movimento liderado por Milk ainda encontra forte resistência de gente como Bryan e Briggs. Em 1978, a consciência política de Milk tinha se estendido à necessidade de conquistar uma cadeira na Câmara Municipal de São Francisco. Não bastava apenas estar nas ruas, organizar paradas gays gigantescas, suas liberdades precisavam ser garantidas por leis. Uma compreensão e tanto para quem queria só criar um espaço, o bar Castro, para os gays se encontrarem livremente. Seu staff, coordenado por Anne, dotou-o dos meios necessários para que, em sua terceira tentativa, ele conquistasse a cadeira de supervisor, vereador, fato inédito na história dos EUA. Seus embates com Bryan e Briggs, pela TV, deram visibilidade ao movimento, pelo fato de ele, Milk, não fugir dos temas polêmicos e enfrentar em igualdade de condições as forças conservadoras e a ameaça de divisão no próprio movimento gay.
Diretor e roteirista privilegiam enfoque na estratégia política
Muitos podem reclamar da linha seguida por Black e Van Sant, de não centrar a ação nas relações amorosas de Harvey Milk. No entanto, o que faz de “Milk” um bom filme é justamente a temática escolhida por eles. As cenas fortes de sexos estão lá, não tão explícitas como alguns gostariam, porém, o que importa no filme é como Milk estruturou politicamente a comunidade gay em São Francisco para criar um movimento nacional. Diretor e roteirista o dotaram de dramaticidade e realismo suficientes para impactar o espectador. Fazê-lo entender que lutas iguais à do movimento GLBT não são travadas apenas nas paradas gays e nas reclamações constantes contra a repressão familiar, patronal e policial. Tem um caráter maior, sócio-político. Chegam a ser didáticos, se é que se pode usar esta palavra, ao frisar a necessidade da luta parlamentar, legal, como Milk o faz ao evitar que professores gays, homens e mulheres, perdessem seu emprego nas escolas públicas por serem homossexuais.
Black e Van Sant, seguindo o caminho aberto por Ang Lee, em “O Segredo de Brokeback Mountain”, a partir de um conto da escritora estadunidense Anne Prouxl, no entanto, deixam para trás as sutilezas e as metáforas a que foram obrigados a usar Stanley Kubrick, em “Spartacus”, através da velada sedução do escravo Antonnicus (Tony Curtis) pelo general e tribuno Cassius Marcellus (Laurence Olivier); William Wyler, em “Ben Hur”, ao registrar a forte atração que o rico Bem Hur (Chalton Heston) exercia sobre o general Messala (Stephen Boyd); e Edward Dmytryck, em “Minha Vontade é Lei”, ao mostrar a velada relação amorosa entre o xerife Clay Blaisedell (Henry Fonda) e o jogador de pôquer Tom Morgan (Anthony Quinn). O espectador dos anos 50, interessado em decifrar estas entrelinhas, tinha de ser dotado de malícia incomum. Diferente de Derek Jarman, cineasta inglês que mais avançou nas abordagens que tinham gays como personagens, a exemplo de seu melhor filme: “Caravaggio”, sobre o pintor renascentista italiano, mestre da luz.
Filme amplia discussão da temática gay
De qualquer forma, “Milk” situa-se no quadro de ampliação de temáticas ainda hoje relegadas à marginalidade, ao circuito alternativo ou simplesmente ao restrito espaço das relações gays. O recurso à memória usado por Van Sant, com Milk ditando para o gravador as impressões de sua luta, reforça sua consciência de que é preciso alcançar amplos segmentos sociais para tirar sua comunidade dos limitados espaços em que é obrigada a se relegar. E, ao sobrepor imagens de jornais, documentários e jornais televisivos às cenas ficcionais, dota-o de registro histórico. Emblemático que o local onde se dá a ação em seus primórdios tenha o nome de “Castro”, espaço reservado à comunidade gay, dotado de explosiva carga revolucionária ainda hoje. Há, mostra-o Van Sant, riscos nesta empreitada, principalmente numa sociedade marcadamente machista, caso da latino-americana, de forte tradição católica.
Mas não só nesta; “Dúvida”, que o diretor John Patrick Stanley, adaptou de sua peça teatral para o cinema, atesta o quanto de preconceito, ódio reprimido, perseguição grassa pela sociedade anglo-saxã. A reitora da escola católica St. Nicolas, do Bronx, Nova York, Aloysius Beuavier (Meryl Streep) trava verdadeira batalha contra o padre Flyn (Philip Seymour Hoffaman) para expulsá-lo de sua paróquia, porque se convenceu de que ele abusa sexualmente do garoto de 10 anos, Donald Miller (Joseph Foster). As implicações de sua perseguição são aterrorizantes, por acusá-lo, sem provas, porque, como ela diz: “não gosto de você”. O caso, em si, evoca a polêmica que hoje envolve a Igreja Católica, acusada de acobertar pedofilia praticada pelo clero em seus diversos níveis. Stanley consegue equilibrar este tema explosivo, sem tomar partido. Confirma o quanto este tema continua controverso. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, tanto para gays, quanto para mulheres e negros. “Milk” pelo menos indica algumas saídas.
“Milk”. (Milk). EUA. Drama. 2008. Roteiro: Dustin Lance Black. Diretor: Gus Van Sant. Elenco: Sean Penn, James Franco, Emile Hish, Josh Brolin, Diego Luna, Alison Pill.
(*) Oscar de Melhor Ator: Sean Penn.