“Divã”: Saindo do casulo
A vida da dona-de-casa Mercedes e seu desabrochar vivendo, aos quarenta anos, situações e relacionamentos que sua vida de casada não lhe permitiu são o centro do filme do brasileiro José Alvarenga
Publicado 03/07/2009 18:44
A sensação que se tem ao ver “Divã”, do brasileiro José Alvarenga, é de que a vida da quarentona Mercedes (Lília Cabral) reflete a de milhões de donas-de-casa classe média espalhadas pelo mundo. Nele estão a comodidade, a aceitação da divisão de papéis no casamento e, principalmente, da estrutura cultural, católico-burguesa, que se impõe aos casais sem que eles reajam. Não sem razão, uma das principais reivindicações do movimento emancipacionista tem sido a de modificar os espaços e a relação na convivência a dois. Não se pode dizer que o universo familiar de Mercedes seja opressivo, de castigos cotidianos, de subserviência constante, a ponto de ter de romper com o marido Gustavo (José Mayer) e os dois filhos para construir uma nova vida. Existe mais cansaço da rotina, inadequação de tarefas, alheamento do parceiro e tentativas de encontrar-se em situações que a faça exercer sua personalidade sem precisar interpretar papéis de boa cozinheira, de boa mãe e de uma companheira que aceite disputar com a TV o seu lugar em sua própria casa.
De repente, quem sabe, ela está sobrando em seu espaçoso e elegante apartamento de alta classe média carioca. Bem ilustra esta impressão os modos como filhos e marido recebem os pratos que ela lhes serve. Gustavo faz cara de quem gosta, mas no fundo está sendo condescendente. O mesmo ocorre quando ele está diante da TV, assistindo a uma partida de futebol e ela quer trocar idéias e não consegue, pois a atenção dele naquele momento está voltada para outro tipo de emoção. Resta-lhe, é claro, as saídas providenciais da sociedade moderna, de buscar conforto nas butiques, nos restaurantes e bares e, principalmente, nos salões de beleza. Estes, aliás, cumprem um papel central nesta questão; a de transformar os cabeleireiros em psicanalistas. Seu cabeleireiro René (Paulo Gustavo) está sempre a ouvindo e a sua amiga Mônica (Alexandra Richter), sobre questões íntimas não discutidas com marido e filhos.
Cabeleireiro faz às vezes de psicanalista
Às vezes, ele se exaspera e se investe contra suas manias e as saídas que ela encontra para melhorar a aparência. Há muita fragilidade e questões submersas que lhe escapam. E as opções que ele lhe apresenta se revelam insuficientes para dar conta do real problema de Mercedes, pois seu impasse se dá em razão das vertentes acima citadas: o peso da herança sócio-cultural católico-burguesa. Muitas delas tratadas em inúmeros filmes, que ditaram moda nos anos 70 e 80. Dentre eles, e, com certeza, “Shirley Valentine”, sobre a personagem-título (Pauline Collins) que maltratada pelo marido, insurge-se e descobre o amor e a vida em uma viagem às ilhas gregas. Liberações que se dão em espaços por elas desconhecidos, onde a existência flui com mais rapidez e as emoções são, sem dúvida, muito fortes. Mas que se justificam dada à urgência de se desfrutar o que lhes foi negado ao longo da relação a dois.
“Divã” percorre caminhos já traçados pela dramaturgia anglo-saxônica; da mulher oprimida que, de repente, se vê liberada das velhas amarras e passa a levar uma vida despojada. Segue um padrão de contestação de costumes, sem qualificar quem os sustenta. A situação se resume ao tema em si, sem olhar em volta. Não é diferente com Mercedes. Alvarenga e seu roteirista Marcelo Saback o traduzem através da comédia, do grotesco das situações em que ela se mete; principalmente seu esforço para atender às urgências da juventude que ficaram para trás. É como se ela, quarentona, não pudesse viver aquelas situações, e por isto ri de si mesma. Para ela pouco importa; tudo é novo, até os ambientes em que os jovens namorados a levam, mais a cativam do que a chocam. Vai se adaptando ao novo mundo, buscando dele fazer parte, sem muita reflexão. E se sente bem, voltada para interesses que atendem à sua necessidade de liberdade.
Filme debocha da busca do corpo exuberante
Mas “Divã” tem seu lado iconoclasta, de critica a busca da estética, do corpo exuberante, que pode, num instante, virar um incômodo. E das conversas atravessadas de Mercedes com sua amiga Mônica sobre experiências sexuais que ela jamais teve e as descreve, para espanto da outra, que vive apenas para satisfazer o marido Carlos Ernesto (Eduardo Lago) e não reclama. E do jeito debochado como ela se comporta diante do padre, que também não escapa à vaidade dos tempos modernos. São momentos assim que fazem a comicidade do filme, em grande parte carregado pela atriz Lilia Cabral, cuja verve transborda de criatividade, submetendo-se às situações com naturalidade sem transformar a personagem numa caricatura. Mostra o quanto ela e, por que não, dezenas de atores fechados na telinha, reprimem sua capacidade em função da audiência. Têm-se a impressão, no filme, de que os outros atores se restringem, com grata satisfação, a lhe fazer escada. E a deixam brilhar.
No entanto, se “Divã” consegue faze rir, que tenha boas situações de comédia de costumes, a câmera 3×4 de Alvarenga é por demais passiva. Mantém sempre os mesmos enquadramentos (plano aproximado) e os personagens quietos, conservando sua origem teatral. Os espaços em que Mercedes se locomove são estreitos, laterais, sem querer dizer que representam sua falta de mobilidade. Às vezes, sua câmera deixa o espectador se situar no ambiente em que ela vive e se desloca sem ocupá-lo totalmente. Então, ele atenta para as mudanças de comportamento dela, reforçadas pelos figurinos de Ellen Millet que o ajudam a avançar para outros ambientes e outras situações. Seus vestidos vão mudando dos tons neutros de seus tempos de casada para os das agressivas tonalidades de sua liberação. Um bom achado, sutileza que contribui para o entendimento do estado de espírito da personagem.
Mercedes muda sem provocar baixarias
Não deixa de ser interessante a sofisticação dos ambientes, a agressividade de seu comportamento, a ansiedade por novas experiências, para confirmar os valores que vão sendo construídos. Não se tem a impressão de que seu mundo está em queda livre. Sua transformação se dá sem grandes lances, do rompimento com o companheiro à entrega aberta ao universo jovem. Seus instantes de hesitação são contornados por inúmeras atividades, por mais que nos pareçam muletas: pintura do cabelo, troca de vestidos, compras em butiques e supermercados, relacionamentos amorosos, retomada de seu trabalho de artista plástica, sem, enfim, cair na derrisão. Muito Shirley Valentine, sem dúvida. Nada Amélia, bem a mulher deste milênio, às voltas com o trabalho, a criação da prole e a convivência com o parceiro que melhor lhe atender às suas necessidades emocionais.
“Divã”. Comédia. Brasil. 2009. 93 minutos. Roteiro: Marcelo Saback, baseado no livro de Martha Medeiros. Fotografia: Nonato Estrela. Figurinos: Ellen Millet. Direção: José Alvarenga. Elenco: Lilia Cabral, José Mayer, Cauã Raymond, Reinaldo Gianecchini, Alexandra Richter, Paulo Gustavo.
Tem a ver
Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, traz breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como o que comentamos abaixo, que mostra como seu diretor usa as relações a dois, sob ótica semelhante à da obra analisada nesta semana, para discutir os impasses do casamento moderno.
Shirley Valentine – Comédia. Inglaterra. 1989. Baseado na peça homônima do dramaturgo inglês Willy Russel. Direção: Lewis Gilbert. Elenco: Pauline Collins, Tom Conti, Bernard Hill. Grande sucesso na época de lançamento, este filme é o retrato das relações matrimoniais da dona-de-casa quarentona que sofre com o mau humor do marido. Um dia ela se insurge e participa de um cruzeiro pelas ilhas gregas, onde descobre as delicias de viver segundo seus próprios termos. Feroz crítica do casamento como instituição e das relações de gênero em que apenas um dos parceiros, no caso a mulher, arca com todas as tarefas enquanto o outro apenas triunfa. Não há como não ver em “Divã” muito deste filme.