Gaza, a maior prisão do mundo
O mundo acompanhou o massacre que Israel perpetrou contra os palestinos residentes na Faixa de Gaza entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. Num dos meus próximos livros, que estou para lançar, tratarei sobre isso em extensa pesquisa de artigos selecionados sobre o tema. A pesquisa mostra que os problemas enfrentados pelos palestinos residentes na região vão se avolumando e hoje se vive um verdadeiro caos. Sobre esse tema dedicaremos a coluna desta semana.
Publicado 03/03/2010 20:56
A Pequenina Faxia de Gaza, cercada por Israel e pelo Egito luta para sobreviver
Como é possível viver assim?
Aos poucos, a grande imprensa vai divulgando, em estilo conta gotas, a precária situação que vive os quase um milhão e meio de palestinos dessa estreita Faixa de terra, encravada com a fronteira com o Egito, Israel e o Mar Mediterrâneo. Não bastasse o cerco nas fronteiras com Israel, que agora impede a entrada de alimentos, materiais de construção e remédios enviados pelo mundo inteiro, também o Egito fecha a fronteira e agora constroi mais um muro segregacionista entre vários existentes no mundo.
A pesquisadora Sara Roy esteve em agosto do ano passado na Faixa. Fez extensa matéria que foi publicada no jornal inglês The Nation (1). Ela é do Centro de Estudos do Oriente Médio, da Universidade de Harvard, considerada a melhor Universidade do mundo. Ela é especialista em OM. Seu último livro, sem tradução ainda para o português, é Hamas and Social Islam in Palestine, publicado pela Princeton University Press. Eu acompanho muitos de seus artigos e um deles inspirou o título do meu próximo livro: “E se Gaza cair…”.
Antes de entrar propriamente nos dados e comentários, gostaria de dar um pequeno histórico do cerco que Gaza vive desde a vitória do Hamas em janeiro de 2006. Em janeiro de 2009 completaram-se quatro anos da vitória do Hamas, como partido político que obteve mais de 50% dos votos nas primeiras e mais limpas eleições – segundo observadores internacionais – já realizadas na Palestina. Ocorre que a partir desse momento, quando o Hamas começou a formar o governo da Autoridade Palestina, os boicotes iniciaram-se. As verbas de ajuda humanitárias foram cortadas. Israel iniciou o cerco e o asfixiamento das fronteiras de Gaza. Várias medidas antidemocráticas e truculentas foram tomadas visando enfraquecer a moral do povo palestino. Até taxas e impostos que Israel arrecada no sistema bancários foram retidas e confiscadas, e não eram repassadas ao governo palestino. Segundo Israel, os Estados Unidos e países europeus, o governo do Hamas era “terrorista” (sic).
Praticamente todas as possibilidades de palestinos trabalharem diariamente em Israel foram interrompidas com as proibições de trânsito nas fronteiras. Os bombardeios que visavam destruir a pequena infra-estrutura da região foram sistematicamente atacados, como prédios públicos, ministérios, escolas. Iniciou-se o racionamento de combustíveis, eletricidade e mesmo da água. Tudo isso já a partir de 2006.
Em 19 de setembro de 2007, Israel declara a Faixa de Gaza como “entidade inimiga” (sic) e amplia o cerco e o boicote econômico, na tentativa de aniquilar um povo lutador e resistente. Com o fim de “controlar a organização terrorista” (sic). Novas e ainda mais duras sanções foram impostas, banindo todo e qualquer comércio nas fronteiras oficiais. Agravaram-se os problemas humanitários. Tudo fora proibido em termos de atividades econômicas. Importações e exportações foram praticamente zeradas. Surge assim a economia ainda mais informal, a chamada economia dos “túneis”, ou seja, um comércio do mercado paralelo, chamado de mercado negro, bem mais caro, que passa pelas centenas de túneis já existentes, mas que foram ampliados.
Dito isso, quero compartilhar com meus leitores, as principais passagens do excelente trabalho de Sara Roy, fruto de uma de suas últimas visitas à Gaza em agosto de 2009. O que me impressiona, entre as várias passagens de seu brilhante artigo que recomendo a leitura integral, é uma, quase que na forma de conclusão onde diz que Gaza é hoje o único lugar do mundo onde a “miséria é fantasiada de sobrevivência e a caridade um bom negócio”. Mas, vamos às informações comentadas.
• Em 2009, entraram em Gaza apenas e tão somente 41 caminhões com ajuda humanitária vinda da ONU e de alguns países. Segundo a Anistia Internacional, seriam necessários 55 mil caminhões carregados com alimentos, medicamentos e materiais de construção para reconstruir a região quase destruída;
• Em agosto de 2009, 90% da população vivia sob racionamento de energia elétrica de até oito horas diárias e os restantes 10% sem nenhuma eletricidade;
• Até 95% dos 3.750 dos estabelecimentos industriais existentes em Gaza foram ou destruídas ou foram forças a parar a sua produção, nesses quatro anos. Isso acarretou, segundo estimativas da OIT, a perda de até 120 mil postos de trabalho. As 5% restantes empresas industriais funcionam muito precariamente, com até metade de sua capacidade;
• A agricultura foi devastada. Dados da ANP, indicam que houve nos bombardeios de dezembro de 2008 e janeiro de 2009, a destruição de mais de 140 mil pés de oliveiras, mais de 135 mil limoeiros, mais de 22 mil outras árvores frutíferas, 10 mil tamareiras e milhares de árvores, diminuindo drasticamente a área verde da região;
• As terras antes irrigadas, ficaram completamente secas e o subsolo esta completamente contaminado, tornando a agricultura inviável, as terras ficaram inférteis. Há um esgotamento do solo. O colapso da agricultura é total;
• A economia, profundamente abalada, depende quase que exclusivamente do setor público e das organizações de ajuda humanitária internacional. Paradoxalmente, o que a move ainda hoje é o contrabando de bens de necessidade primária que entram pelos túneis da fronteira com o Egito, que Mubarak, com a ajuda do exército americano, esta tentando acabar com as passagens nas formas de túneis, com o famigerado muro que vem sendo construído. Estima-se que dois terços da economia seja hoje movida pelo contrabando;
• O próprio Banco Mundial vem constatando, pelos dados estatísticos, uma transferência de renda e riqueza da população em geral para as pessoas que dominam esse setor do mercado negro;
• Praticamente não há mais um sistema bancário em Gaza. Mesmo os bancos israelenses que operavam na região, deixaram de fazê-lo;
• A economia dos túneis acabou gerando um efeito altamente nefasto na já combalida economia palestina. O comércio oficial, formal, estabelecido acabou ficando enfraquecido ou fechou as portas, cedendo lugar para a informalidade e o contrabando. Os preços dispararam;
• Segundo a análise de Sara Roy, nesse contexto, duas “classes sociais”, por assim dizer, pode-se dizer que surgiram com força nessa sociedade miserável. Uma, de funcionários públicos que conseguem manter certa renda mensal garantida (ainda que nem sempre trabalhem, pois há uma divisão na ANP hoje) e outra a dos que comandam a economia do contrabando, que enriquecem a cada dia, mesmo sem produzir nada, apenas intermediando os negócios;
• Praticamente cessaram as atividades econômicas na região. Surgiu o que os economistas vêm chamando de um “consumo do desespero”, que atinge ricos e pobres, claro que afetando muito mais os mais pobres dessa sociedade. É o desespero para garantir o mínimo de sobrevivência para as suas famílias;
• O desemprego, em dados oficiais, atinge no geral 31,6%, mas na cidade de Khan Younis chega a 44,1%. A Câmara de Comércio da Palestina estima que os números corretos ultrapassam a casa dos 65% da população economicamente ativa;
• Estima-se que pelo menos 75% dos 1,5 milhão de palestinos que vive em Gaza depende diretamente da ajuda humanitária para suprir as suas necessidades básicas de sobrevivência. Esse percentual há dez anos não passava de 30% da população;
• Relatórios oficiais da ONU atestam que o número de famélicos, que não conseguem o mínimo recomendado para a sua alimentação diária, já chega a 300 mil pessoas, em torno de 20% da população, o triplo do que há alguns anos;
• Israel nunca permite que os palestinos recebam mais do que 25% de todas as suas necessidades diárias de alimentos, por cargas que passam pelas suas fronteiras. Alguns falam que esse índice às vezes cai para 16%;
• No mês de janeiro passado, entraram em média 24 caminhões por dia na Faixa. Como as estimativas da ONU é de que seriam necessários pelo menos 400 caminhões ao dia, constatamos que apenas 6% de todos os suprimentos diários chegam aos palestinos todos os dias;
• Segundo a Federação das Indústrias da Palestina seriam necessários 240 mil caminhões de suprimentos por ano para o que eles vêm chamando de “esforços pela reconstrução”;
• As causas da mortalidade infantil, que vem aumentando, depois dos ataques e dos bombardeios, passaram a ser, além das mais comuns como subnutrição, diarreia, também o que se chama de “prematuridade”, baixo peso e má formação congênita;
• O aquífero de Gaza é quase que inteiramente impróprio para o consumo humano. Praticamente todos esses depósitos de água estão contaminados por nitratos, em quantidade muito superiores ás recomendadas para o consumo humano pela ONU e pela OMS. Chegam, em alguns casos, até a seis vezes acima do permitido. E onde não estão contaminadas, as águas são salobras, impróprias para o consumo. Não há mais praticamente nenhuma fonte limpa de água em Gaza hoje;
• O número de crianças até cinco anos afetadas pela desnutrição crônica subiu de 8,2% para 13,2%.
Como diz um dos autores do relatório Goldstone, que condenou Israel por crimes de guerra, se as coisas continuarem dessa forma, Gaza em breve será decretada pela ONU como uma zona diagnosticada como “não habitável” pelos padrões da Organização Mundial. Um verdadeiro genocídio, mesmo quando não se dispara um único tiro contra a população indefesa.
Sara ouviu nas ruas um dos maiores absurdos, mas a pura realidade. O mundo só se lembrou desse sofrido povo quando a sua população foi impiedosamente bombardeada pela aviação israelense. Assim, o paradoxo é que a esperança de alguma “melhora” só ocorreu quando foram atacados. Depois disso, o mundo virou as costas e os palestinos foram esquecidos.
Mas o que é pior, na conclusão de Sara, é a tentativa de divisão desse povo e de sua liderança. Dois entes, duas entidades, duas instituições, duas lideranças vêm se consolidando. Uma do Hamas, que atua na Faixa de Gaza, e outra na Cisjordânia, da ANP, ligada ao Fatah. Essa é a tática dos inimigos do povo palestino hoje. De um lado, pode-se oferecer mais ajuda, prodigalidade, apoio e reconhecimento. Do outro lado, do Hamas, é condenado à miséria, às privações e tudo é criminalizado.
Isso tem feito até de certa forma surgir uma mudança de posição da comunidade internacional. Quase que apoiando mesmo um novo processo de colonização da Palestina, de legitimação das ocupações das poucas e últimas terras que ainda restaram em mãos palestinas.
Não podemos aceitar essa separação de Gaza da Cisjordânia, nem essa divisão entre esse povo. É preciso resistir. Os palestinos resistirão. E nós os apoiaremos.
(1) Artigo de 17 de fevereiro que pode ser lido em http://www.thenation.com/doc/20100301/roy