"A Fita Branca": A Gênese da Serpente
Diretor austríaco, Michael Haneke, compõe a gênese do nazismo na Alemanha de 1913 a partir de múltiplas e estranhas ações num povoado dominado pelo autoritarismo e conservadorismo de suas camadas dirigentes.
Publicado 05/03/2010 01:01
Ao final de “A Fita Branca”, do austríaco Michael Haneke, muitas respostas dependem da interação do espectador com o que ele acabou de vivenciar. Os fios deslindados durante os 145 minutos da narrativa abriram para ele múltiplas vertentes. Uma delas, não a principal, é a de saber quem praticou os atos brutais que resultaram na queda do médico do cavalo, espancou duas crianças, cegou uma delas e ateou fogo ao celeiro. A outra, significativa, o leva a buscar a razão para o violento comportamento dos agentes que intervém nas relações entre as diversas camadas sociais que o diretor/roteirista estruturou para mostrar a gênese do nazismo na Alemanha nos anos 1913 e 1914.
Esta, sem dúvida, o permite fazer as ligações necessárias à compreensão de uma sociedade dominada por rígidos códigos morais, autoritária e conservadora. São eles que encobertam suas reações doentias através de ameaças, punições e, no limite, à eliminação de quem, supostamente, tentar romper este falso equilíbrio.
Diante destas vertentes, ele, o espectador, se vê diante da estrutura do filme, cuja narrativa se detém em cada extrato social do povoado para entrelaçar suas ações. Cada um dos agentes tem sua vida desvendada para melhor refletir o microcosmo por eles habitado. Passa pelo onipresente e inacessível Barão, o pastor evangélico, o administrador da fazenda, o médico, o regente de coral-professor primário e chega ao camponês. Em torno deles circulam as crianças, os adolescentes e os jovens cujos atos são dominados por desconfianças, acusações, castigos, sem que se avance para o sentido deles. Em dado instante eles interagem, guardadas as diferenças sociais, sem se relacionar de fato. Principalmente no culto religioso e nas festas de fim de colheita. Depois, seguem suas vidas, dominadas pelas normas ditadas pelo Barão.
Barão dita as normas no povoado
Este destrinchar das relações sociais do povoado, bem estruturada por Haneke o ajuda – o espectador – a se posicionar diante de uma obra múltipla, de leitura variada. O diretor/roteirista, acostumado a refletir sobre a sociedade moderna a partir do comportamento bizarro da burguesia (“A Professora de Piano”), da luta do imigrante argelino para manter sua identidade na França (“Cachê”), se vale do suspense, do mistério, da investigação policial para atraí-lo para seus entrechos. O chamado quem é o culpado e por que agiu desta forma, tão comuns neste tipo de filme, o ajudam a mantê-lo atento. Pode ser uma sequencia aparentemente banal, a do professor (Christian Friedel) temendo pela queda de Martin (Leonard Proxauf) da ponte ou das crianças fazendo barulho antes de ele entrar na sala de aula. Ambas aguçam sua curiosidade, mas, em “A Fita Branca”, estes recursos não têm a menor importância, uma vez que Haneke usa-os para reforçar o traço doentio das camadas sociais dirigentes do povoado alemão.
Devagar, cada uma delas terá seu perfil delineado. Todas estão dominadas pelo que lhes determinar o Barão (Ulrich Tukur). Este, inacessível e onipresente no início, parece estar acima do bem e do mal. Quando ele finalmente emerge, é com uma força, que ele, o espectador, entende o temor que provoca nas outras camadas sociais. Todas dependem dele, giram em torno dele, sobrevivem graças a seus interesses. Espécie de senhor feudal tardio, ele não percebe o que se passa ao seu redor até ser atingido, não só em seus negócios, mas, principalmente, em seu núcleo familiar.
Algo está mudando, engendrado pelas relações de classe, pelo acidente fatal na moenda e, notadamente, pela contestação que surge a partir daí, por meio do jovem camponês Max Felder (Sebastian Hülk). As mudanças que ele opera avançam para as de mercado de trabalho ao substituir os camponeses alemães pelos imigrantes poloneses. Porém, não bloqueia a decadência, o desmoronar de suas relações amorosas e o encaminhar dos que o rodeiam para a mutação que abrirá caminho para o nazismo.
Haneke trabalha tempo e estados de espírito
A maneira como sua reação atingirá a família de Felder, pai, dividida após o ato praticado por Max, atesta sua luta para manter seu poder. Pai e filho se digladiam: o jovem compreendendo o mal causado por ele, o Barão, ao não cuidar de seus trabalhadores, evitando acidentes fatais, e não os remunerando a contento; o pai culpando o filho por colocar em risco a sobrevivência da família. Max, que se vingara do Barão, provocando comoção nos demais moradores, mesmo transformado em paria, é o mais lúcido de todos vinculados de uma forma ou outra à fazenda, em torno da qual giram as relações sócio-econômicas do povoado. Até quando se vê num impasse, não entra em pânico. Ele se vê diante das consequências de seus atos e não há em quem se apoiar; dada à mão pesada do Barão.
Numa das mais belas cenas de “A Fita Branca”, Haneke usa vários recursos de encenação numa mesma sequencia. Enquanto Max avança para o celeiro e se defronta com uma cena de horror, as crianças brincam; ele passa por elas, entra na casa onde uma mulher está cantando. Ele não grita; não lhes comunica o que acabou de presenciar. Eles estão desligados da ação principal, entregues há outros estados de espírito, alheios ao que aconteceu de grave naquele instante. Mas, por outro lado, sofrerão os efeitos do que ele descobriu sem poder interferir. Um tipo de ação que se repente em outra sequência: a da conversa do professor com jovem Erna (Janina Fautz). Ela lhe revela fatos graves, ele quer aprofundar o que ela lhe conta, mas o Pastor está para chegar, e ambos ficam apreensivos. O primeiro recurso demonstra o quanto à realidade age apenas sobre quem a vive e como suas ondas atingirão quem a ignora; e a segunda comprova quanto o temor controla o frágil ser não lhe dando chance de escapar aos ditames do agente dominador.
Pastor ameaça professor por este querer a verdade
O espectador envolvido com os fatos em ocorrência apreende logo os impasses por eles vividos. Em idêntica posição encontra-se o jovem professor, narrador dos entrechos, analista dos atos aparentemente isolados, ele transita por todas as camadas sociais do povoado. Às vezes comunga com a visão deles, noutras se indigna. Ele, sim, quer buscar as razões para os estranhos atos, desligados uns dos outros. Mas começa por alertar o espectador de que eles podem ter acontecido como ele os narra ou não. Trata-se assim de impressões, de gestos e atos descolados da realidade imediata, mas que ligados fazem sentido. Ele mesmo o alerta, o que viria depois teria consequências mais contundentes e cruéis do que o acontecido no povoado.
Sua indignação o leva a percorrer caminhos inimagináveis, debruçar-se sobre questões para além de sua vivência de Professor. Sua conversa com o pastor numa sequência crucial do filme ajuda o espectador a localizar-se. O Pastor (Burghart Klaubner), ante as evidências que lhes são apresentadas, prefere ameaçá-lo, culpando-o pelo que vier acontecer a partir dali. Poder igual ao dele, Pastor, só o do Barão. E se vale dele para impor o silêncio.
Este silêncio, mola do que permitiu a ascendência e a ação do nazismo, termina por ser o centro de “A Fita Branca”. Na verdade, todos sabiam do que acontecia, até quem o praticava, ninguém o assumia, preferindo mantê-lo supostamente sob controle. O Pastor o faz ao punir os filhos Klara e Martin, o administrador da fazenda do Barão ao espancar o filho, o médico desmascarado por sua amante, a parteira e enfermeira, Anna Wagner (Steffi Künert), prefere evadir-se com ela e os filhos Rudi e Anni deixando atrás de si o rastro de mistério.
Diretor devolve o prazer gerado pelo bom cinema
Nesta altura, o espectador já terá montado todas as peças, deixando para trás a tentativa de encaixá-las no gênero quem fez o quê, preferindo unir os fios de outra forma: de como as diversas camadas sociais contribuíram para que os fatos ocorressem daquela maneira.
Percebe o quanto elas eram coniventes, o quanto seu comportamento era doentio, decadente, imoral, sustentado pela hipocrisia. Também terá se extasiado com a encenação de Haneke em várias sequências: a do encontro do Professor com Eva (Leonie Benesch), babá do filho do Barão, na rua, em que elementos de cena, bicicleta e peixe, assumem o caráter simbólico da inocência e do apoio para o diálogo cheio de nuances, malícia, temores, sedução; o cruel instante de verdade entre o médico (Rainer Bock) e Anna Wagner, com ambos desfiando todo o fel de que são capazes, desnudando as fraquezas, culpas e defeitos um do outro; o desmontar do castelo de aparências do Barão ao ouvir da mulher Marie-Luise (Ursina Landi) que ele nada mais representa para ela.
Haneke não interfere, deixa-os falar, se digladiar, sem tomar partido. Nem o espectador se deixa levar. Talvez só na sequência do Professor com Eva, pelo encanto de ver o início da paixão entre eles, se emocione. Pode também odiar o pai de Eva (Detlev Buck), com suas observações machistas. Porém, seu conselho para que o Professor espere o amadurecimento da filha, saindo da adolescência, é condizente com a necessidade de um conhecer o outro antes da vida em comum. Estes contextos tornam “A Fita Branca” a grande obra que é, devolve ao espectador o prazer de ver o bom cinema. Ainda mais que entre uma sequência forte e outra, Haneke o dote de poesia: as cenas da neve tendo ao fundo a floresta ou a neve caindo enquanto os personagens se debatem tomados pela culpa, ódio e rancor são de pura beleza.
Filme tem paralelo com obra de Thomas Mann
Uma dualidade com tempos diferentes: da frieza e do distanciamento da natureza em relação ao conflito humano e a dos homens entregues à construção de sua história. Eles, os homens, agiram sobre ela, natureza, com uma brutalidade igual à sua quando reage à devastação. Hans Castrop o sente ao estar internado no sanatório no alto da montanha, tentando curar sua tuberculose, e não percebe os conflitos político-sociais ao seu redor. Thomas Mann, a exemplo de Haneke (ou o contrário), transforma o desfecho de sua angústia, em seu romance “A Montanha Mágica”, no prenúncio da 1ª Guerra Mundial. Mann o faz mostrando a sociedade igualmente doente, recorrendo ao tratamento, Haneke percorre outro caminho: da doença provocada pela estrutura social, fechada em si, sem condição de sustentar seus pilares carcomidos, recorre ao conflito bélico.
O recurso visual usado por Hanecke para dotar sua narrativa e os entrechos do clima necessário à compreensão do espectador é o preto e branco. Uma ousadia nos tempos atuais. A paisagem inóspita, a frieza dos homens e mulheres que transitam por ela, e seu alheamento ao que se passa ao redor, são reforçados pelos tons cinzentos, esbranquiçados da fotografia de Christian Berger. O claro escuro torna o ambiente opressivo, sem área de escape. Ele ainda contribui para tornar aterrorizante a sequência da revelação da tortura sofrida pelo garoto Karl (Kai-Peter Malina), cujos olhos feridos se destacam em seu rosto branco: dá para sentir a crueldade de quem o dilacerou; justo ele um menino com sofrimento mental. O espectador se defronta com dezenas deles num fila do campo concentração, caminhando para a câmara de gás.
Preto e branco traduz a aridez do povoado
O branco da neve reflete a aridez das relações sociais no povoado, dominado pelo Barão. Ele está lá e parece distante do que se passa no espaço não ocupado por ela. Adquire outro significado nas mãos do Pastor. Para ele, ela simboliza a pureza. Através da fita branca tenta redimir seus filhos do erro cometido. No entanto, não os redime em momento algum, transforma-se no símbolo da punição, da crueldade, levando-os ao ódio. Nada mais ilustrativo das sociedades repressoras, que, no caso do povoado de “A Fita Branca”, germinou as atrocidades dos campos de concentração, para dizer o mínimo.
Haneke talvez quisesse que o espectador deixasse o cinema com esta sensação: o nazismo não nasceu de repente, a partir da chegada de Hitler ao poder, estava latente na sociedade alemã, que o pôs em marcha após a derrota na 1ª Guerra Mundial. Não é a toa que sua obra ganhe maior relevo com “A Fita Branca”(*), obrigatória para se entender os impasses da sociedade moderna.
“A Fita Branca”. (“Das Weibe Band”). Drama. Alemanha/França/Áustria/Itália. 2009. 145 minutos. Fotografia: Christian Berger. Roteiro/Direção: Michael Hanecke. Elenco: Christian Friedel, Ernest Jacobi, Leoni Benesch, Ulriche Tukun, Burghart Klaussner .
(*) Palma de Ouro, Festival de Cannes 2009, Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro 2010, recebeu duas indicações ao Oscar 2010 (filme e fotografia).