“Sudoeste”: Mundo imóvel

A insistência dos moradores de um vilarejo à beira mar em não se conscientizar do passado é vista pelo diretor brasileiro Eduardo Nunes como uma maneira de apegar-se aos costumes

Não há como esquecer o cineasta húngaro Béla Tarr, de “O Cavalo de Turim”, ao assistir “Sudoeste”, do brasileiro Eduardo Nunes. Em ambos o tempo condiciona o comportamento dos personagens. Impregna-os de tal forma que não reagem a ele. Inexiste, assim, uma dialética que os levem a usá-lo em seu proveito. Enquanto em Tarr há sempre algo programado, como se a ditar o futuro, em Nunes é o passado que retira a consciência do presente. O que aprisiona, no bom sentido, o espectador no pequeno universo, nem por isto finito, de seres entregues a si mesmos.

É uma estética que privilegia o preto&branco, ambientes rústicos, lentidão narrativa, montagem primorosa. Não se trata, em Nunes, de remeter a transposição estéticotemática, mas de escolhas. Percebe-se em Tarr o escoar do tempo de Andrei Tarkovski (“O Sacrifício”/”Espelhos”/”Stalker”) ou de Yasujiru Ozu (“Viagem a Tóquio”), que o expande em cada filme para dimensionar o apego do homem a seu meio. Nunes, diretor estreante, segue outro percurso. É a permanência dos costumes, da crendice, dos ritos, das arcaicas estruturas sociais que impedem os moradores do lugarejo à beira-mar de desgarrar-se do que ficou no passado. É uma leitura e tanto.

Em “Sudoeste” dois trágicos fatos abalam a vida dos pescadores. Enquanto estes os relembram ao longo dos anos, Clarice (Simone Spoladore) cresce e deles se descola. É como se apenas ela tomasse conhecimento da passagem do tempo, ainda que se relacione com eles no passado. Não se trata de realismo fantástico, de mutação em outros seres ou a predominância da crendice. É tão só a falta de consciência de que aqueles acontecimentos ficaram no passado e que é preciso criar novos ritos para a evolução dos próprios moradores.

Consciência da mudança demora

Embora o tempo (o vento) demarque o estado psicológico dos personagens, eles reforçam a certeza de que a consciência vem depois da superestrutura. As classes sociais levam séculos para perceber as mudanças no campo político-sócio-tecnológico. Ficam apegadas a ritos superados, a certezas que não se sustentam. Nunes trabalha esta dualidade através de um único personagem: Clarice, a Jovem Consciência. Ela brota da estranheza, por ter sido criada pela parteira-benzedeira (Léa Garcia), que vive num barraco fincado no mangue. Acostumou-se a pouca lida com os demais habitantes do lugarejo. Quando, num imprevisto, deixa o barraco, sua vida se transforma. Ela, um bicho da água, vai viver em terra. É então que a diferença de percepção entre ela e os demais moradores se estabelece.

Nunes estabelece uma ligação entre eles, sem que ela seja efetiva. São mais esboços de relações possíveis. Inclusive afetivas. Eles convivem no mesmo espaço, mas têm diferentes percepções do passado e do presente. Assim, o luto predomina. Inexiste superação. Uma bela passagem de tempo, usada por Nunes, ocorre quando Clarice adulta encontra o também adulto João, num jogo entre a consciência da mutação e a permanência dos costumes configurada no grupo folclórico. Este transita pelo presente, sem perder o elo com o passado. Porém, ela cresceu mentalmente; João não.

O mar como fonte social

A questão é que Clarisse, com o transcorrer do tempo, aprende a lidar com esta dicotomia. Para não afastar-se dos demais moradores, ela se integra, sem perder a consciência do transcorrer do tempo. É como se, de repente, tivesse necessidade disso para não sucumbir. Seu passado fica para trás na simbólica sequência da destruição do barraco em tempo de maré cheia. O que resta é a memória. A ninguém interessa seu passado, mesmo que Conceição (Dira Paes) desconfie da coincidência de datas e fatos, que a ela se liga.

O que fascina neste belo “Sudoeste” é a capacidade de Nunes de estruturar o filme com poucos personagens, num tema pequeno que se desdobra para se tornar típico da cultura brasileira. Não é mais o Nordeste, a seca, mas o mar, o ermo, que também caracteriza o universo popular. A riqueza que o mobiliza é a exploração do sal, cujo lucro, como sempre, concentra-se na mão de poucos. E se a riqueza não circula, predomina a crendice e os pequenos fatos, dominados por quem a controla.

Outra virtude do filme é não tratar os moradores do lugarejo como figuras do mar, vivendo fora da estrutura econômico-social. Existe uma dinâmica, ditada pela pesca e a produção do sal. Mesmo que o eixo central seja a dicotomia entre a permanência dos costumes e a necessidade das mutações sociais, só a referida estrutura pode, de fato, trazer a consciência. Clarisse, por si, não aglutina nem é fato detonador da superação. Saber que os moradores pararam no tempo é insuficiente. Ainda assim, um grande filme.

(“Sudoeste”).
Drama. Costumes.
Brasil.2011. 128 minutos.
Fotografia: Mauro Pinheiro Jr.
Música: Cristiano Abreu, Tiago de Azevedo, Yuri Villar.
Roteiro: Guilherme Sarmento, Eduardo Nunes.
Direção: Eduardo Nunes.
Elenco: Simone Spoladore, Raquel Bonfante, Júlio Adrião, Dira Paes, Léa Garcia.

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