“César Deve Morrer” Mutilados e excluídos

A partir do presídio de Rebibbia, em Roma, os diretores italianos Paolo e Vittorio Taviani discutem a deformação dos condenados como agentes sociais. 

Em dada sequência de “César Deve Morrer”, os intérpretes amadores se transformam em personagens shakespearianos. Os irmãos diretores Paolo e Vittorio Taviani os filmam em planos fechados, demonstrando confiança neles. Há perfeita identidade entre eles e as figuras históricas envolvidas numa trama maquiavélica pelo poder no Império Romano, embora se fale o tempo todo em amizade. E o imperador Júlio César (Giovani Arcuri), embora desconfie de Cássio (Cosimo Rega), jamais atenta para as ambições do suposto amigo Bruto (Salvatore Striano). É um jogo de espelhos que não se ilumina, salvo quando as intenções se concretizam em completa traição.

Shakespeare trata em “Júlio César” do poder absoluto e a dificuldade de mantê-lo, dadas às ambições dos que contribuem para mantê-lo. Não é este, no entanto, o universo que interessa aos Taviani, sim a percepção de que o sistema carcerário capitalista traduz esse poder por outras vias. Nele estão trancafiados os que transgrediram os códigos do sistema. Muitos se valeram deles para criar suas próprias redes e fugiram ao controle. São, por estas vias, crias do próprio sistema, ainda que vistos como estelionatários, mafiosos, vendettinos, traficantes.

Nenhum traço de criminalidade resta neles ao se tornarem Júlio César, Bruto, Cássio, Décio (Juan Dario Bonetti) e Marco Antônio (Antonio Frasca). Eles são agora a camada dirigente. Têm de se comportar como tal, diz o diretor da peça Fabio (Fabio Cavalli). As demais classes sociais seguem os códigos, leis e moral criados por eles, para validar seu poder. Este é o universo no qual devem penetrar os agora intérpretes para dar veracidade e confiabilidade ao papel. E tira deles qualquer verniz manchado pelo “crime” que cometeram numa sociedade cujas leis transgrediram.

“Atores” perdem traços de condenados

Assim, os Taviani tiram deles as severas penas de prisão perpétua ou de longa duração. Eles devem ser tão só intérpretes. Sassa/Striano, mafioso, e Giovanni, condenado a prisão perpétua, deixam de ter qualquer reminiscência durante os ensaios e a apresentação. E adquirem o olhar, o comportamento e a entonação de seus personagens. Seu mundo agora parece outro. Vem daí a força narrativa do filme. Os Taviani não fizeram uma adaptação da peça de Shakespeare, montaram esquetes das principais cenas, que vão num crescendo até o ápice, sem perda da compreensão da luta pelo poder travada durante o Império Romano

Esta dicotomia entre os esquetes teatrais e o cotidiano do presídio italiano de Rebibbia, em Roma, é estruturada pelos Taviani com o uso do preto e branco para a ficção e a cor para a realidade. Desta forma percebe-se a transição entre um e outro. E muito mais quando as cenas da peça os levam a descobrir sua própria identidade e a necessidade de evadir-se para recriar sua existência. Tudo o que fizeram transgredindo as leis impostas pelas camadas dirigentes perdem o sentido. Ainda que, às vezes, vazem para o ajuste de contas entre Giovanni e Juan ou instiguem os delírios de libertários de Sassa. Em outro sistema sem dúvida suas ambições seriam outras.

Esta visão dos Taviani permeia todo o filme. A começar pela escolha dos presidiários e do presídio para traçar seu paralelo entre a realidade e a ficção, que se interpenetram. Eles são em que pesem suas ações mais vítimas que algozes. Numa sociedade de classes, que privilegia a acumulação da riqueza e o consumismo, e incentiva a esperteza e a tramóia, inexiste preocupação em despertar neles a sensibilidade artística. Sassa só compreende isto depois. Ele, como os demais, foram brutalizados pela preocupação com a riqueza, e não viram outra saída se não negligenciar os códigos e leis do sistema capitalista.

Presidiários se tornam participantes ativos

Os Taviani conseguem, além disso, trazer para os esquetes os presidiários que dela não participam como intérpretes. Eles são os deserdados chamados a intervir, espécie de consciência coletiva a ditar os rumos de Bruto e Marco Antônio. Desta forma, eles os influenciam, deixando de ser platéia passiva. As grades que os separam são as mesmas que dividem os líderes/camadas dirigentes/elites dos proletários/deserdados/excluídos. Os Taviani mostram que eles têm uma função decisiva no desfecho da história. E o filme, ao invés de ser uma obra de poucos personagens, se torna uma obra coletiva.

Não se quer dizer com isto que os Taviani fizeram um filme de recuperação de presidiários, de revirar as entranhas do sistema carcerário Italiano. Estão mais interessados no presidiário em si. Em sua capacidade de ser o homem total, capaz de usar suas habilidades na produção, na relação afetiva e nas artes. É o que Sassa termina por fazer. Deixa de ser o homem mutilado do sistema capitalista, gerado apenas para produzir e consumir, sem liberar os sentidos que o tornarão de fato um agente transformador. Bilhões de Sassas e Giovannis vivem em iguais condições no planeta. Não é pouco.

“César Deve Morrer”. (“Cesare deve morire”).
Drama. Itália.
2012. 86 minutos.
Música: Giuliano Taviani/Carmelo Travia.
Fotografia: Simone Zapagni. Roteiro: Paolo e Vittorio Taviani/Fabio Cavalli.
Elenco: Antonio Frasca, Cosimo Rega, Salvatore Striano, Juan Dario Bonetti, Giovanni Arcuri.

(*) Leão de Ouro Festival de Berlim 2012

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