“Dentro de casa”: Armadilhas do cotidiano

Cineasta francês François Ozon usa a literatura para discutir paixão juvenil, voyeurismo e a relação de casais classe média

No universo transitado pelo professor de literatura Germain (Fabricio Luchini), neste “Dentro de Casa”, do cineasta francês François Ozon, a arte é enfadonha ao estar com a companheira Jeanne (Kristin Scott-Thomas) ou instigante ao lidar com o jovem aluno Claude Garcia (Ernest Umhaver). Esta dualidade de universos tem em comum apenas sua figura. A do homem de meia idade, sem grandes ambições, depois do fracasso de seu único livro. Jeanne e Claude irão despertar nele emoções submersas, sem que perceba para onde o encaminham.

O filme, no entanto, tem universos paralelos. O de Jeane/Germain e o de Germain/Claude, que embora separados se auto-influenciam. O elo entre eles é Germain. E divide-se, assim, em dois eixos: O do frio casamento de Jeanne/Germain e a criativa relação professor/aluno, Germain/Claude. Mas é a vida conjugal de Jeanne e Germain que irá determinar o desfecho do filme. Casal de meia idade, que não percebe a ruína do casamento sem desejo ou interesse para além da arte, que ele, Germain, tolera, sem apreciar. Uma arte de vanguarda que atrai tão só a marchands e uns poucos aficionados.

François Ozon (“Swimming Pool”, 2003), a partir da adaptação livre da obra do argentino Juan Mayorga, “O garoto da última fila”, trabalha este eixo conjugal quase sub-repticiamente, fechando-o com o eixo principal apenas na terceira parte do filme. Entretanto é ele que dá sentido ao que ocorrerá ao casal e à narrativa aparentemente centrada na criativa relação professor/aluno. Nesta, Germain se mostrará trágico e traído e Claude o anjo exterminador.

Voyerismo desperta o apagado Germain 

O que irá animar o entediado Germain é o simples trabalho de classe que ele dá ao aluno Claude. E recebe de volta uma narrativa vívida, picante, cheia de descobertas. Não descobertas das relações sociais, do cotidiano da escola, trata-se do interesse do jovem por Esther (Emmanuelle Seigner), mãe de seu colega de classe Rapha (Bastien Ughetto). Seu ardil para fazê-la interessar-se por ele é ajudar o amigo nos trabalhos de matemática. Com o tempo, ele irá vasculhar a intimidade do casal Esther/Rapha pai (Denis Menochet) e aproximar-se mais de Esther.

Germain passa então a orientá-lo sobre a construção da narrativa literária, a criação de entrechos e de personagens e como surpreender e emocionar o leitor. E se interessa tanto pelo desenrolar da história contada por Claude, que ela deixa de ser um trabalho escolar para se tornar uma novela. A própria Jeanne, a princípio desinteressada, vê-se tocada pela ousadia com que Claude se entrega ao desejo que Esther nele desperta.

A escritura visual usada por Ozon configura o desejo submerso provocado pela história de Claude em Germain e Jeanne. Dela pela maneira como esconde suas emoções, dele pela ânsia de desvendar os segredos que esconde o aluno. Germain é participe da trama, do adentrar a intimidade do casal Rapha pai/Esther e desta em particular. Numa das sequências, em projeção de seu desejo, ele, Germain, está ao lado de Claude, vendo-o junto da amada Esther, louco para vê-los consumar a relação.

Duplo voyeurismo Germain/Claude

Há nesta e em outras sequências duplo voyeurismo: de Germain pelos escritos de Claude despertar nele desejo submerso, reprimido, que Jeanne não mais consegue lhe provocar. Não menos complexo é o desejo/voyeurismo de Claude, mesmo assediado pelo amigo Rapha, ele mantém a promessa de ajudá-lo nos trabalhos de matemática, para não afastar-se de Esther. Muitas vezes corre o risco de ser surpreendido ao espiar Esther e Rapha pai na cama ou observá-la sozinha no sofá à espera do companheiro.

A câmera de Ozon não faz revolteios ou o precede, vai com ele, ajuda o espectador a espiar o que ele vê. Mas destitui Claude do erotismo, da nudez de Esther, da relação sexual entre Esther e Rapha pai, como se o desejo de Claude não incluísse sexo, fosse apenas voyeurismo. Nisto se constituiria seu prazer. No entanto, ele avança para uma relação madura, de tentar obter dela mais que o espiar. Esther, como objeto de desejo, é a pacata mãe de família classe média, afeita ao marido e ao filho Rapha, sem saber que este já perdeu a inocência.

Há muito nos personagens do filme nos das obras dos autores, Flaubert (1821/1880) e Dostoievski (1821/1881), que Germain indica a Claude para ler. Mesmo que sejam esboços. Principalmente de Jeanne, ela é Madame Bovary (1857) enclausurada na galeria de arte e em sua casa, ele próprio, Germain, é o Príncipe Michkin de “O Idiota” (1869), preso às suas lembranças e desejos. E Claude é o personagem moderno que re-desperta em Jeanne o desejo e leva Germain à derrocada.

Ozon trabalha-os de modo a fechar a narrativa sem que o espectador perceba que se encaminhava para isto: a falácia do casamento moderno em que certos parceiros compartilham gostos e a cama, menos o mútuo desejo.

“Dentro de Casa”. (“Dans La Maison”).
Drama. França.
2012. 105 minutos.
Música: Philippe Rombi.
Fotografia: Jérôme Almeras.
Roteiro/adaptação: François Ozon, baseado na obra “El chico de la última fila”, do escritor argentino Juan Mayorga.
Direção: François Ozon. Elenco: Fabrice Lucchini, Kristin Scott Thomas, Ernest Umhaver, Denis Menochet, Emmanuelle Seigner, Bastien Ughetto.

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