O Lugar do Carro

A grande novidade das primeiras décadas do século passado foi o veículo automotor. A invenção era o chique, que deixava pra trás os veículos de tração animal ou os próprios animais de montaria. Era também uma alternativa muito mais ágil e eficiente do que o bonde. Era, enfim, o símbolo da modernidade.

Um século depois, porém, nos países mais desenvolvidos o carro particular é que se consolida como símbolo do atraso, do démodé, da prepotência e arrogância. Em vez de salvar a mobilidade urbana, é agora a razão maior da imobilidade, dos engarrafamentos, dos deslocamentos demorados, da poluição de todos os tipos, dos acidentes que lotam hospitais e cemitérios.

Para nós, tupiniquins, o carro ainda é um fetiche de riqueza e poder. A renda de enorme fatia da sociedade brasileira cresceu muito na última década, como demonstram dados de muitas fontes e que é visto e sentido a olho nu em nosso cotidiano.

Com isso, houve notável mudança no padrão de vida. Milhões de famílias passaram a ter um lar e, dentro dele, equipamentos que antes não tinham. E no país já há mais telefones móveis do que moradores. A meta de todos passou a ser, então, um automóvel, que é o símbolo mor da melhoria de vida.

Realizar essa pretensão passou a ser algo mais palpável e economicamente mais compensador. Números oficiais demonstram que os preços dos transportes públicos cresceram bem mais do que os dos itens relativos à locomoção privada. Incentivos fiscais e controle sobre os preços dos combustíveis contribuíram para este resultado.

Esse fetiche, contudo, é uma inversão de valores. Para se locomover, o que é moderno, o que é chique, é o transporte público. Por meio dele é que demonstramos o nível de desenvolvimento da nossa sociedade, das nossas cidades. Também aqui, o carro particular precisa virar marca do passado, do atraso, dos acidentes, do desperdício e da poluição. É uma tranqueira velha, portanto.

O automóvel deve ficar como uma alternativa para o lazer das pessoas e suas famílias. E como veículo de serviços, na função de taxi, de instrumento para prestação de atendimentos de emergência, de entregas de pequenas cargas e tantas outras utilidades. Mas, para as pessoas comuns se locomoverem, já era.

Em alguns países, essa compreensão já está mais arraigada. Nos Estados Unidos, há alguns meses, um fabricante de automóveis encomendou pesquisa entre jovens de 18 a 24 anos e constatou que esta faixa de público não gosta nem quer andar de carro. Entre as 10 marcas de produtos preferidos pelos entrevistados, não apareceu nenhuma de automóveis.

Nosso Estatuto da Mobilidade, em vigor há mais de ano, ensina o caminho das pedras. É acoplar um plano de mobilidade local ao plano diretor das cidades e fazer valer. Ou seja, as autoridades locais, onde mora o problema, devem adotar as medidas necessárias e fazer também campanhas publicitárias que demovam a paixão pelo carro.

E cada um faz sua parte. Exemplos: evitar os horários de pico, mudando o expediente em empresas privadas e órgãos públicos, marcar afazeres (consulta médica, compras, bancos etc.) para períodos alternativos, caminhar mais, usar bicicleta, internet…

Junto, é claro, há que se ter transporte público eficiente e barato. Mesmo que isso seja feito com subsídios e isenções. Ou até bancado pelo poder público, que em muitos casos pode muito bem fornecer transporte de qualidade gratuitamente.

Esse custo pode ser coberto pela cobrança de pedágios e taxas de estacionamento a quem não quer abrir mão do carro particular. Há, enfim, muitas formas de dificultar a vida de quem quiser manter esse suposto privilégio. É uma questão de vontade política, que existe em Londres, na Grã-Bretanha, por exemplo.

Lá, quem anda de carro paga para os outros se locomoverem de graça. Aqui, quem financia o transporte público é justamente aquele que menos pode – o mais pobre. E assim, há um círculo vicioso que, em vez de atrair novos usuários para esses serviços, os afasta cada vez mais.

Do jeito que está, é pior pra todos, inclusive pra quem só quer andar de carro. Ninguém anda.

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