Água versus energia
Históricos aliados nas políticas oficiais brasileiras, a água e a energia elétrica entram agora em choque, pelo que revelam os debates em andamento nos comitês de bacia que funcionam. Em Goiás, fica clara a contraposição do uso dos recursos hídricos para a agropecuária às barragens para mover usinas hidrelétricas.
Publicado 14/01/2014 16:00
O conflito começa por determinações de operadores de hidrelétricas que impedem, com respaldo legal, o uso dos lagos de barragens como reservatório de água para outros fins. Ou seja, não se pode retirar água desses lagos para irrigação, por exemplo. O argumento central para isso é o de que a maior parte das usinas opera no limite e, portanto, precisa de todo o líquido dos barramentos para girar suas turbinas.
Por seu lado, os agricultores de todos os portes, que precisam de mananciais para suas lavouras irrigadas, são prejudicados de várias maneiras pelas barragens. Mas, neste ponto, surge outra aparente contradição: esses mesmos produtores rurais dependem de energia elétrica para ativar as máquinas que bombeiam e aspergem água nas plantações.
Para citar um exemplo, grande debate (ou embate) vem sendo travado em torno da hidrelétrica de Batalha, no rio São Marcos, da bacia do Paranaíba/Paraná/Prata. É uma usina gerida por Furnas (Eletrobrás), que fica nos limites dos municípios de Cristalina(GO) e Paracatu(MG). Sua capacidade será de 52MW/hora, quando entrar em operação, nos próximos meses.
O reservatório dessa barragem, que está concluindo o enchimento, vai alagar uma área de 13.700ha, o que equivale a 685 lotes médios da agricultura familiar. Ao redor da sua lâmina d’água, existem mais de mil propriedades rurais, incluindo 800 famílias em assentamentos de pequenos agricultores.
Neste caso, pequenos e grandes estão unidos contra um inusitado inimigo comum: a energia elétrica. Os produtores apontam, desde logo, a baixa capacidade ou ausência de linhas de transmissão de alta voltagem para muitas regiões do Estado. Um grande produtor adiou a instalação de mais 10 pivôs de irrigação por falta de energia. Pelo mesmo motivo, um industrial mantém fechada uma unidade que construiu para processar produtos agrícolas.
Respaldados pelo Comitê de Bacia do Paranaíba, esses produtores ampliaram a abrangência do debate que travam. Em primeiro lugar, pedem solução imediata para o caso específico do lago de Batalha, que se resume na liberação da água. Mas alertam para problemas futuros, caso não ocorra uma revisão nos planos de novas hidrelétricas.
Eles questionam com força o conceito de que as grandes usinas são mais eficientes, em vigor no país há mais de meio século. Mas criticam de igual modo as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) projetadas para os rios de toda a bacia do Paranaíba. Só no São Bartolomeu, são previstas seis delas.
A produção local de energia, de fonte solar, eólica ou usando resíduos das próprias plantações — o bagaço de cana, por exemplo – seria, segundo eles, um caminho bem mais barato e sustentável. E menos danoso, já que as áreas inundadas por barragens emitem gases que contribuem para o chamado efeito estufa, ao redor do Planeta, e afetam a fauna aquática e terrestre local.
Nos próprios sistemas de irrigação, alguns tabus foram quebrados. Até outro dia, era quaseum dogma ter que barrar cursos d’água para poder irrigar alguma área. No mais das vezes, no entanto, essa é uma obra desnecessária, pois o volume de vazão de água é igual ao de chegada, de modo que a retirada pode ocorrer no próprio leito dos córregos, ribeirões ou rios.
O comitê de bacia é um instrumento criado pela Lei 9.433/97, que regulamentou a Política Nacional de Recursos Hídricos, prevista na Constituição Federal (Art. 21). Sua função é ajustar as normas nacionais à realidade de cada bacia e deliberar sobre ações pontuais relacionadas a águas de subsolo, nascentes, veredas, lagoas, córregos e rios ali existentes.
Ainda persiste, porém, a prática de formação de comitês apenas para efeito formal, pois muitos seguem os ditames dos operadores dos sistemas, estatais ou privados. É certo que, hoje, muitos desses comitês já são formados de modo mais democrático, dando voz e voto a entidades da sociedade civil, como prevê a lei. É o que ocorre no Comitê do rio Paranaíba, que mantém grupos de trabalho para cada um de seus afluentes.