“Sabor da Vida”, triplas exclusões

A insistência da sociedade em excluir os diferentes e ainda assim eles se manterem vivos é o tema deste filme da cineasta japonesa Naomi Kawase.

Com o sensível olhar de quem trata de delicado tema, a cineasta japonesa Naomi Kawase (Floresta dos Lamentos, 2007) entrelaça a vida dos excluídos, a natureza e o meio social em que vivem, para configurar rituais e tradições de seu país. Cada um deles reflete a conservadora visão classe média da periferia de Tóquio, que influenciará as vidas da idosa Tokue (Kirin Kiki), do cozinheiro Sentaro (Masatoshi Nagase) e da adolescente Wakana (Kyara Uchida). Não sem graves consequências.

Conta muito neste “Sabor da Vida”, o modo como Kawase introduz os personagens, sem matizá-los de início, deixando o espectador sem ideia de quem são, na verdade. Eles surgem e se envolvem um com o outro, reforçando a alegoria em torno do dorayaki, panqueca recheada de doce de feijão vermelho. Devagar, a narrativa reforça a ideia de que Tokue, ao repassar a Sentaro os segredos de seu preparo, preserva a tradição de uma geração transmitir seu conhecimento à outra, recusa alguma.

O que Kawase faz, a partir do livro “An”, do escritor japonês Durian Sukegawa, é não deixar o espectador pensar que está diante de mais um filme sobre culinária, desta vez japonesa. O dorayaki é só um pretexto. As motivações para reunir Tokue e Sentaro advêm não das habilidades deles no preparo do doce de feijão, mas do que são na realidade. Dado que cada um se vê numa caixa, fechado, sem poder se mover. Sentaro preso à dona do pequeno espaço, Tokue a seus dedos defeituosos. E daí suas exclusões.

Kawase liga o ser à natureza

De outra natureza é a exclusão da garota Wakana. Solitária, sem amigos, ela supre esta carência se relacionando com seu canário. E, depois, se une a Tokue e Sentaro. Mas Kawase não se vale apenas deste trio para dar conta de seu tema. Numa simbólica sequência, ela volta sua câmera para as cerejeiras de tons turquesa a ser agitadas pelo vento, completando a interação do ser com a natureza. Abordagem constante em sua filmografia, sempre a relacionar o homem/a mulher à água e à floresta.

É por meio das cerejeiras que ela demarca o ciclo da existência dos personagens. Wakana, a princípio amedrontada com a agitação das cerejeiras, aprende com Tokue seu significado. E mesmo Sentaro, tão alheio a presença delas, aprende a elas se integrar. Há muito de metafísica, de crença xintoísta, a religião japonesa, nesta comunhão. Quando se trata de ver homem e meio ambiente integrados ao incessante fluir do universo.

Contudo, estas sequências ajudam o espectador a desvendar as motivações de Tokue, a mais complexa personagem do filme. Ela vive uma vida de exclusão, a hanseníase, antiga lepra, a mantém confinada no sanatório National Tama Zenshoen, na periferia de Tóquio. Ter saído dali ajudou-a a se sentir viva. Capaz de contribuir para o bem-estar da comunidade onde vive, mesmo sendo obrigada a omitir sua letal doença.

Tokue e Sentaro vivem em caixas

Não só ela se enreda neste silêncio; Sentaro também o faz, por um erro pelo qual foi punido, mas seu meio não o perdoa. Principalmente por quem o socorreu e ainda o obriga a continuar pagando, para não ser excluído de vez. Desta forma, tanto ele, quanto Tokue, foi trancado em caixas construídas pela sociedade para confiná-los em locais distantes do convívio cotidiano com sua comunidade. Menos Wakana que, cansada de seu meio, preferiu se unir a eles, de forma a driblar a solidão.

A Tokue que sai das buscas de Sentaro e Wakana é um ser múltiplo, complexo, dotado de uma força incomum, para uma mulher cuja vida se restringiu ao confinamento. “Engravidei, mas eles aqui não me permitiram ter o filho”, revela. O ambiente em que viveu passa uma tranquilidade refletida no modo como ela surgiu na vida de Sentaro. Com seu casaco e chapéu rosa, o olhar decidido e calmo a um só tempo. Nada queria para si, tão só uma chance para dividir o que sabia com quem a tratou a contento.

Este tipo de construção em mãos menos sensíveis poderia desandar num melodrama, pontuado pela derrisão. Kawase a mantém sob controle, em andamento às vezes rápido, como na discussão de Sentaro com a dona do imóvel de sua loja, ou lento, caso da visita do trio ao sanatório, onde entra em contato com a idosa amiga de Tokue. São tensas sequências que revelam injustiças, insensibilidade e maus tratos aos excluídos, e nas quais Kawase evita o arco dramático desandar em agressões e violência.

Kawase cria bons climas

Além disso, ela compõe climas (veja as sequências de Tokue observando as cerejeiras se agitarem ou a visita de Sentaro e Wakana ao jardim do sanatório), que revelam o estado psicológico dos personagens e sua integração com o meio, deixando a sensação de haver algo mais a desvendar. E como enquadra Sentaro de lado, no desfecho, deixando ver parte das pessoas na rua e depois corta, pegando-o de perfil, e, finalmente, a articulada elipse, seguida das vozes da multidão. Diz muito com pouco.

“Sabor da Vida”. (An). Drama. França, Alemanha, Japão. 2015. 113 minutos. Trilha sonora: David Hadjadj. Montagem: Tina Baz. Fotografia: Shigeki Akiyama. Roteiro: Naomi Kawase, baseado no livro de Durian Sukegawa ,“An”. Direção: Naomi Kawase. Elenco: Masatoshi Nagase, Kirin Kiki, Kyara Uchida.

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