“Ela Volta na Quinta”, de mulher ontem e hoje

O universo de casal na terceira idade e as diferentes formas como encaram o relacionamento são os temas do filme de estreia do mineiro André Novais.

Há certa melancolia na forma como a idosa Maria José (Maria José Novais Oliveira) se desloca pelo quarto para arrumar a cama. Seus gestos são de cansaço e o quarto de poucos móveis traduz sua solidão. Custa a deitar e quando o faz puxa o cobertor e vira-se para o canto, como se estivesse sozinha. Mesmo seu companheiro Norberto (Norberto Novais Oliveira) ao deitar-se repete idêntico ritual, sem ao menos um boa noite. Esta tornou-se a rotina do casal na terceira idade.

Este plano-sequência volta a se repetir outras vezes, neste “Ela Volta na Quinta”, como se o diretor-roteirista estreante André Novais Oliveira quisesse convencer o/a espectador/a de que a paixão deles arrefeceu com os anos. Contundo, Maria José chegou a este ponto com os filhos criados e casados, e restou tão só o cansaço, o vergar-se, sem a energia e a disposição amorosa de antes. Pesada, obesa, ela chegou ao limite, sem o verbalizar para Norberto.

Com essa abordagem, o jovem André Novais trata de um raro tema na cinematografia brasileira: o da relação amorosa na terceira idade. Sem glamour ou referências ao passado de beleza e sensualismo, Maria José interiorizou sua juventude. Ela e Norberto são afrodescendentes de classe média, habitantes de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Tiveram uma vida de trabalho, criaram os filhos André (o próprio diretor) e Renato (Renato Novais Oliveira) e agora vivem sozinhos.

Resquícios do patriarcado

Enquanto ela cuida da casa e raramente sai para se divertir, Norberto trabalha em sua oficina de geladeiras, frequenta bares, passeia com o filho André e visita a amante. Pertencem, assim, ao universo patriarcal com papéis definidos para um e outro. Entregue por 35 anos à labuta de casada, na terceira idade ainda se prende a este forjado papel. Daí seu ritual de dormir sozinha, virada para o canto, mesmo tendo Norberto ao seu lado.

São estas as marcas de sua geração, prisioneira de costumes e imposições que lhes deixaram cicatrizes e dores jamais relevadas. Contudo a paixão cedeu espaço à introjetada tolerância, a convivência com a dupla vida de Norberto e o interesse pelos problemas dos filhos adultos. “Procure outra profissão, para sair dessa vida”, aconselha a André, deitado ao seu lado, na cama. Operário, ele sustenta a família subindo em altas torres elétricas, mesmo tendo medo.

Assim André Novais faz o contraponto entre duas gerações ao situá-las em épocas distintas, através de diálogos referenciais: I – Os de André com a companheira caucasiana (Élida Silpe) sobre os planos dela mudar para outro bairro, porque as viagens de ônibus a deixam estafada; II – E os de Renato ao querer ter filho e a morena (Carla Patrícia) se opor por não serem ainda casados. As reações delas são adversas às de Maria José, porquanto não se submetem às patriarcais imposições.

Relações de jovens ficam sem meio-tom

As relações amorosas tornam-se, deste modo, sinceras, sem nuances que as atenuem. E além disso ficam numa explicita descontinuidade entre duas gerações de mulheres, vítimas do machismo e da imposição do “chefe da casa”. Ainda assim, na equilibrada construção de André Novais, Norberto trata Maria José com paciência e carinho, a exemplo de quando ela relembra músicas de Elis Regina, Maria Bethânia e Marisa Monte, e ele a leva a dançar, de rosto colado, numa amorosa demonstração do outrora.

O diretor-roteirista não dramatiza as relações inter-raciais entre negros e brancas. Faz tudo parecer natural, menção alguma deixa escapar. Os casais, mesmo Norberto e sua amante caucasiana, estão ali por estarem apaixonados, independente de raça ou cor da epiderme. Mas, se por um lado, isto é elogiável, de outro faltou contraponto para mostrar o quanto tal relação continua a ser rejeitada pela classe média e a burguesia, ambos racistas, medievalistas, a almejar o esdrúxulo arianismo-tupiniquim.

Seriam fios dramatúrgicos a dar complexidade ao filme, num momento de ódio ao diferente e golpismo fascista no Brasil. A exemplo de Affonso Uchoa em “A Vizinhança do Tigre”, André Novais construiu uma obra coletiva. Incluiu a própria família, a mãe Maria José, o pai Norberto, o irmão Renato e os amigos em várias posições-chaves de sua equipe. E como artista afro mostra a pequena classe média afrodescendente, igualmente excluída da estrutura político-econômico-social de um país multirracial.

Filme é crônica afro-familiar

Sua estética neste “Ela Volta na Quinta” é do diretor que preferiu o plano-sequência para dar conta de seu tema. Quis apenas observar os personagens sem interferir em suas ações, fazendo com que o/a espectador/a também se distanciasse. Isto lhe permitiu fazer a crônica de uma família afrodescendente, não só do casal na terceira idade, mas também da geração atual, desnudando continuidades não só deles, afros, mas também da estrutura capitalista-burguesa que os excluem, sempre.


Ela Volta na Quinta. Drama. Brasil.Contagem. 2014. 107 minutos. Trilha sonora: Maurílio Martins. Fotografia/montagem: Gabriel Martins. Roteiro/direção: André Novais Oliveira. Elenco: Maria José Novais Oliveira, Norberto Novais Oliveira, André Novais Oliveira, Renato Novais Oliveira, Élida Silpe, Carla Patrícia.

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