A justiça brasileira e o futebol de varzea
Havia na minha terra um juiz de futebol folclórico, o Chicão. Alto, empertigado, zagueiro amador na juventude. No caso dele não é redundância dizer que era um zagueiro duro, os adversários atingidos por suas patadas que o digam. Quando a idade não lhe permitiu mais jogar foi ser juiz.
Publicado 16/12/2016 12:19
Só que, como árbitro, manteve a mesma atitude apaixonada de zagueiro/torcedor. Numa partida em que a seleção da minha cidade perdia por um gol de diferença para um time do Juazeiro do Norte, Chicão levou o segundo tempo até inacreditáveis sessenta e sete minutos, até que nosso time fizesse um gol e mantivesse altaneiro o nosso orgulho de invictos, na mais longa partida que já assisti.
Doutra feita, cabeleira impecavelmente alisada a brilhantina, pente no bolso, marcou a nosso favor um inexistente pênalti a que ele não teria como ver, dado que estava quase na outra metade do campo. Marcou e gritou “mão”. Como alguém o alertasse que não fora mão, mas o atacante fora derrubado na área, berrou do meio do campo:
− Nem quero saber o que houve, o que importa é que foi pênalti.
E saiu aos pulos em direção à pequena área do adversário, vibrando como nenhum de nós, apaixonados torcedores na beira do campo de terra, teríamos coragem de fazê-lo.
Lembro de Chicão por esses dias a propósito da nossa suprema corte, cada vez menos suprema, a julgar pelas suas brigas intestinas e pelas suas pouquíssimo ortodoxas decisões.
Algumas ações do STF nos fazem pensar que aquele seleto grupo é composto de juízes de futebol de várzea, capazes de envergonhar até mesmo Chicão, se ele ainda apitasse algum jogo. Uma das mais recentes, a evocar ainda a metáfora futebolística, envolve o ministro que “mata no peito” e que “marcou um gol de placa” ao emplacar a filha como desembargadora, dizem as más línguas, tão ferinas em Brasília quanto na beira do campo de terra do Cedro. O ministro, insatisfeito com a derrota do time do procurador Deltan, foi mais longe ainda que Chicão. Depois do jogo encerrado, ele decidiu anular um gol, recomeçar a partida e ainda tomou uma decisão inédita, a de que o time do procurador não pode perder, sua trave está blindada. Foi mais longe que Chicão porque a partida aconteceu noutro campo, com regras próprias, um campo que deveria, em tese, ser independente.
Que nada, o ministro “mata no peito” ignorou a independência, anulou o gol e mandou a partida recomeçar. O ato foi tão escandaloso que mereceu a pública e ruidosa condenação de um outro juiz de várzea que age como torcedor, desculpem, de outro ministro. Indignado com a parcialidade do nobre colega, o juiz vociferou:
− Fecha o Congresso logo e entrega a chave ao Dallagnol.
Tristes tempos esses em que vivemos, em que um juiz que demonstra tão pouco apreço pela democracia e se comporta como militante partidário na não tão suprema corte se apresenta agora como uma voz lúcida e razoável. O pior é que ele está certo, é melhor encerrar de vez o campeonato e entregar a cadernetinha para o Dallagnol, para que ele anote nela o placar que lhe for mais favorável.
Em outra sala da justiça, no tribunal de exceção do altiplano paranaense, o juiz de terno preto grita com advogados de defesa, permite a intimidação de testemunhas e age, nas palavras de um dos advogados, como acusador principal. Para o juiz de várzea do Paraná, tal como para Chicão, o jogo só acaba quando seu time ganhar. Não há partida de futebol tão longa, tão injusta, com juiz tão descaradamente parcial, quanto essa que é disputada contra Lula.
Os doutos senhores da lei, que têm tanto apreço pelas citações latinas, deviam reler, se já o fizeram alguma vez, as Catilinárias. Pois a cada uma dessas ações arbitrárias, atrabiliárias, a cada power-point apresentado, a cada cândida e cínica afirmação de que “as instituições estão funcionando”, a cada golpe dentro do golpe, vai se firmando no povo a mesma pergunta de Marcus Tullius Cicero:
− Até quando abusarão da nossa paciência?