Na mesa, a Venezuela. Mas, não só!
Há pouco mais de um mês, o presidente norte-americano disse que os Estados Unidos não descartam uma intervenção militar na Venezuela.
Publicado 25/09/2017 11:09
Alguns consideraram uma blague, jogo para a plateia interna, acompanhada por um imediato desmentido do Secretário de Defesa. Contudo, nada que um presidente dos Estados Unidos diga pode ser desconsiderado. Ainda que a ameaça à Venezuela não se traduza em planos efetivos para uma intervenção militar clássica, ela serve de mote para a condução de uma política ainda mais intervencionista na América do Sul, aproveitando-se de um cenário político no qual governos conservadores apresentam-se como linha de frente da defesa dos interesses norte-americanos.
Oficialmente, os governos sul-americanos manifestaram-se por uma solução pacífica do conflito que hoje tem a Venezuela como palco (somente palco, pois os atores não são exclusivamente venezuelanos). Não condenaram Trump, apenas emitiram uma opinião diferente, algo muito pouco contundente para uma ameaça daquela natureza.

Agora, no último dia 18, paralelamente à Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente norte-americano ofereceu um jantar a mandatários e ministros de países latino-americanos. Inicialmente, foi anunciado que compareceriam Michel Temer, Juan Manuel Santos (Colômbia) e Pedro Pablo Kucinski (Peru). Todos países que participarão de exercícios militares conjuntos em novembro deste ano. Ao final, Panamá e Argentina também foram incluídos e Kucinski só não jantou na Trump Tower porque as vitórias da oposição em seu país o impediram de viajar a Nova York.
No cardápio, a Venezuela, como Trump reiterou em discurso na ONU. Mas não só! É ilusório imaginar que a ameaça norte-americana se volta exclusivamente para o país de Hugo Chávez. Em um contexto de pacificação na Colômbia, com as FARC adentrando a vida política institucional do país, os EUA precisam de novos pretextos para manter e ampliar sua presença militar na imensamente rica floresta amazônica. Um continuará a ser o narcotráfico, bem como outros ilícitos internacionais. O outro é a instabilidade política venezuelana.
Os EUA buscam ampliar sua presença militar na América do Sul há anos. O Plano Colômbia, instituído em 2002, permitiu que atuassem direta e indiretamente no conflito civil colombiano, na região amazônica. A base militar instalada em Mariscal, no Paraguai, mantém os Estados Unidos próximos à tríplice fronteira e a Quarta Frota de sua Marinha, patrulhando o Atlântico Sul, permite ataques a qualquer ponto do subcontinente. Essa frota, aliás, estava desativada desde 1950, retornando apenas em 2008, mesmo ano da fundação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-Americano (o CDS). O CDS, uma iniciativa do governo brasileiro, rompeu com a concepção de segurança hemisférica, deslocando de Washington para as capitais do sul as decisões quanto à defesa da região. Além disso, trouxe como ponto central a proteção dos recursos naturais da América do Sul e a soberania de sul-americanos sobre eles. Naturalmente, incomodou os Estados Unidos.
O papel do governo brasileiro é fundamental para se compreender a busca por autonomia que marcou a política externa regional nos primeiros anos do século. Durante o governo Lula, o país procurou protagonismo também na esfera da defesa. O já mencionado CDS, a elaboração da Política e da Estratégia Nacional de Defesa e a busca da ampliação do leque de parceiros no fornecimento de equipamentos militares (acordos com França e Suécia) foram pontos importantes. Contudo, o golpe no Brasil levou ao poder aliados dos Estados Unidos e busca a todo o custo atender às demandas represadas no período anterior.
Desde o princípio, o governo golpista brasileiro manifestou seu propósito de alinhar-se às diretrizes ditadas por Washington. A crítica de José Serra, primeiro chanceler do governo Temer, ao modelo de integração consagrado pelo ciclo progressista já anunciava esse caminho. A viagem de Aloysio Nunes Ferreira a Washington um dia depois da votação do impedimento da presidenta Dilma na Câmara dos Deputados foi outro indicativo. Enquanto presidiu a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, Aloysio defendeu enfaticamente uma aproximação do Brasil com os Estados Unidos. Não à toa, foi ele o escolhido para suceder Serra no Itamaraty.
Em março deste ano foi condecorado em Brasília o general Clarence Chinn, comandante do Exército Sul dos Estados Unidos, responsável pelas operações em toda a América Latina. No mesmo mês, foi assinado o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento (Master Information Exchange Agreement – MIEA) entre Brasil e Estados Unidos, que consagra o alinhamento do governo Temer aos EUA, fazendo com que o Brasil esvazie o sentido de uma estratégia própria em política de defesa. O discurso de Temer na Assembleia Geral das Nações Unidas, sem qualquer menção às instituições da integração, também reforçou essa nova velha linha.
No mesmo mês de março – fomos informados desde Washington – o governo brasileiro convidou os Estados Unidos para participarem com efetivos de apoio na AmazonLog17, o exercício militar que reunirá em Tabatinga-AM, no mês de novembro deste ano, forças de Brasil, Peru e Colômbia. Embora o Centro de Comunicação Social do Exército informe que a participação dos EUA se dará apenas com efetivos de logística, chama a atenção o convite para acompanhar exercício militares na absolutamente estratégica região amazônica. Bem como chama atenção a coincidência desse exercício com as declarações intervencionista de Trump.
A defesa da soberania sobre a floresta foi, desde a reconstitucionalização do país, pedra angular da política de defesa e da doutrina militar. Por isso, o convite aos EUA produziu reações entre oficiais brasileiros, evidenciando o dissenso ante a orientação do governo Temer. Um e-mail, repercutido pelo defesa.net (espécie de voz extra-oficial dos militares), circulou internamente com tons duros: “convidar as forças armadas dos EUA para fazer exercícios conjuntos com nossas Forças Armadas, na Amazônia, é como crime de lesa-pátria. Ensinar ao inimigo como nos combater na selva Amazônica é alta traição” .
A declaração de Trump não foi um raio em céu azul.
Ela veio em um contexto de realinhamento do Brasil aos objetivos estratégicos dos EUA, com enormes riscos para a soberania dos estados sul-americanos. Muito se escreveu sobre o desprestígio do governo Temer quando, logo após a declaração de Trump, o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, ignorou o Brasil em seu giro pela América Latina. Pence não passou por aqui porque o governo brasileiro já estava assegurado e servindo de ponta de lança para arregimentar mais compromissos dos demais governos da região.
O caminho para aquele jantar na Trump Tower envolveu nossa América em um novo alinhamento político e militar. O isolamento da Venezuela, pretexto público para as ações em curso – goste-se ou não de Maduro – é uma permissão tácita para a captura geopolítica de todo o continente. A busca por uma solução pacífica e regional para a Venezuela e o rechaço a qualquer intervenção externa não é apenas a defesa da soberania de um país vizinho (que por si só já bastaria como justificativa). É, principalmente, o caminho da resistência para evitar uma ameaça à soberania de todos os estados da região.