“O Retorno de Ben”: De família e de drogas

Em drama familiar, cineasta estadunidense Peter Hedges constrói metáfora sobre a mulher do século XXI ao mostrá-la em duplo papel.

Alguns filmes valem pelo modo como mergulham o espectador/a num universo fora de seu cotidiano (“A Favorita”, de Yorgos Lanthimos, 2018). Enquanto outros muitas vezes o atraem ao encenar o que lhe é familiar com tal realidade que sua vida lhe parece opaca (“Um ato de Esperança”, de Richard Eire. 2018). Neste “O Retorno de Ben”, contudo, o cineasta estadunidense Peter Hedges (06/07/1962) funde estas duas estruturações dramáticas ao centrar sua história no duplo papel da mãe que se vê entre salvar o filho si mesmo e do narcotráfico. Nada, porém, fora do que ele/ela se acostumou a ver não apenas na mídia como nos bairros onde vivem.

Em seu filme, Hedges começa por desenvolver sua narrativa centrada numa família classe média do interior do Estados Unidos. Não uma qualquer, pois foge aos padrões estadunidenses, dada à miscigenação não frequente nos país. Holly Burnes (Julia Roberts, 28/10,1967) é caucasiana, casada com o afrodescendente Neal (Courtney B. VAnce), com quem tem dois filhos pequenos.

Eles vivem num sobrado com a filha dela Yvy Burnes (Kathryn Newton), de seu casamento anterior. Logo nas primeiras sequências vê –se que predomina a harmonia entre eles, não só pelo clima natalino, mas pelo modo como se relacionam.

Estas sequências de abertura nos filmes costumam ditar a maneira como o espectador/a passa a captar as nuances das imagens que expõem a história. No caso da harmonia, ela diz muito quanto à possibilidade de um casal de origens raciais diferentes se amar e constituir família, sem os conflitos apregoados pelos racistas. Mas aqui a construção é outra, serve para preparar a plateia para o que virá a seguir. E neste drama familiar nada mais apropriado, basta surgir o inesperado personagem para a harmonia ser revirada de ponta cabeça para a narrativa tomar outro rumo.

Ben é o fator de instabilidade

Toda a conceituação e impressão tida pelo espectador/a pode mudar seu centro de atenção. É o chamado fator de instabilidade, criado pelo personagem cujo passado leva os demais a temerem por sua presença. Aqui é o jovem Ben Burnes (Lucas Hedges, filho do diretor), a surgir de repente, como se viesse compartilhar o Natal da família, por ser filho de Holly e irmão de Yvy. Toda a carpintaria dramática construída por Hedges irá concentrar nele, a partir daí toda atenção da família e do próprio espectador/a. E se dará conta de quem é ele e a razão de seu retorno.

Em princípio esta configuração dramática do filho-problemático pode ser um clichê. Aqui o que importa é que através dele Hedges introduz o tema central deste “O Retorno de Bem”: a dualidade desequilíbrio familiar versus dependência-química. E o quanto a droga, seja cocaína ou maconha, interfere nas relações familiares a ponto de desestruturá-las. As indagações de Neal, Ivy e da própria Holly sobre a razão de Ben ter retornado emergem devagar. Não entre as crianças, eles adoram o irmão, devido às brincadeiras e o clima entre eles. Nada diferente transparece.

Hedges, embora deixe o espectador antever as ameaças, centra as atenções na harmonia advinda do clima natalino. No princípio, Ben é construído como um jovem centrado, decidido, com seus planos em ocorrência. No entanto, dado ao modo como Neal, Holly e Yvy o tratam, nada na família continuará a ser o mesmo. É como nos antigos faroestes hollywoodianos: haverá o momento em que o mocinho ou o bandido irá ao encontro do que o fez retornar. É um tema subjacente aos motivos do irrequieto do Ben. Hedges, ao que se depreende, vai dando a impressão de que o centro da mal-estar é ele. Surge uma questão ou outra, mas é pouca.

Julia Roberts é a mãe sem excessos

Há o momento da virada, recurso corriqueiro nas histórias imagéticas hollywoodianas, em que a narrativa muda radicalmente. E em seu roteiro, Hedges o faz ao reforçar o papel de Holly na história. Ela o dividirá com o filho, não apenas como mãe, é a mulher a assumir o papel antes centrado no homem. A Neal caberá, como é natural nestes tempos de responsabilidades com ela compartilhadas, ficar na retaguarda e cuidar das crianças. E não se veja nisto uma questão racial.
Hedges teve o cuidado de evitar esta desconfiança ao citar num diálogo o quanto Neal havia lutado para ajudar o enteado a levar uma vida saudável, sem inferência química.

O espectador/a percebe logo nas primeiras cenas que Hedges matiza Holly como dona de casa desde o início. Assim evita que depois, durante uma ação, ela se mostre exímia atiradora e ótima lutadora de kung-fu. Pelo contrário, Júlia Roberts lapida seu papel de mulher simples nos gestos e no modo de se vestir e falar. Às vezes é protetora, mas sem excessos. E por outro lado fica aflita por não saber o que esperar do filho. Ele mesmo nas sequências cruciais das buscas empreendidas por eles lhe revela sua capacidade de causar danos aos outros. “Você não sabe as coisas ruíns que eu fiz”. E ela lhe responde: “Ninguém está te cobrando nada”. Mesmo assim, tem consciência do que virá, devido ao passado recente do filho.

Ainda que faltem sequências expositivas para configurar o envolvimento de Ben com o tráfico em flashback ou não, Hedges se vale dos diálogos e da ação dele para o espectador/a entender que não se trata de uma vítima. Se para Holly ele é ainda o inexperiente garoto que foi cativado pelos chefões da droga, ele mesmo se apressa em lhe dizer: “Eu fiz Magie se viciar”. E mesmo em meio à uma reunião com o núcleo de recuperação dos dependentes químicos, ele ainda demonstra estar na ativa. São nestas sequências que Hedges retira dele toda a inocência.

Hedges faz os personagens passarem por mutações

Hedges é dado a fazer seus personagens passarem por mutações. Desde o início, Ben é mostrado como o jovem que caiu nas garras do tráfico. Porém quando ele transita pelos decadentes ambientes sob o domínio dos chefões da droga se mostra à vontade, todos o conhecem e o querem em ação. E o que o fez voltar a eles não é se reintegrar, busca apenas ter de volta o que está prestes a perder. E nesta tentativa termina por arrastar a mãe consigo. E tem plena consciência do risco que corre ao voltar ao seu ambiente. Seu forçado rito de passagem o leva a amadurecer.

Esta ambiguidade matizada por Hedges dá outra configuração ao personagem do jovem Ben. Se antes ele era tão só vítima, como acredita Holly, dada à sua juventude, ele agora é outro. Não é só a “mula” que leva a droga, mas também o traficante que a distribui e vende. E assim, o conflito entre a vítima e o algoz se estabelece. O espectador/a deixa de vê-lo como indefeso, pois ele se encontra em ascensão na cúpula do tráfico. Conhece tão bem seus meandros que o próprio chefão tende a não o excluir. A contradição advém da mãe por ainda o ver como adolescente,
São nestas sequências da segunda para a terceira parte dos 103 minutos do filme que Hedges torna clara sua intenção de a personagem se limitar à ser mãe, não a justiceira que ali está para proteger o filho dos vilões traficantes. Ela continua a não perceber a ligação dele com os controladores do tráfico na pequena cidade. E sua presença vai ajudá-lo, não a enfrentá-los, mas a compreender que é melhor voltar para casa e continuar vivo. Todo o realismo deste “O Retorno de Ben” vem de sua persistência em livrá-lo do confronto com os ocultos chefões do tráfico.

Holly é a mãe que não desiste de salvar o filho

Nas sequências finais, Hedges amplia o leque narrativo ao incluir a subtrama da qual participam Neal e Ivy. É a família se integrando no resgate do filho desviado de seu meio. Holly se esforça para localizá-lo, deixando de lado o real motivo de terem entrando neste impasse. Antes se tratava de localizar o mascote da família que, por alguma razão, alguém o levou. Encontrá-lo perdeu o sentido, a motivação agora é de outra natureza. E pai adotivo e enteada se esmeram em seguir as orientações de Holly, em sua desesperada busca do filho. E sequer admite desistir.

Ao contrário do cineasta francês Robert Guédiguian (03/12/1953), em “Cidade Está Tranquila (2001)”, o interesse de Hedges não é fazer o espectador entender o dilema da Holly através do choque. No caso de Guédiguian, a mãe Michéle (Ariane Ascaride) ao perder esperança de recuperar a filha (Julie-Marie Parmemtier), pois a droga se entranhou no cérebro dela, a ponto de fazê-la perder o sentido da realidade. E o francês construiu uma das sequências mais impactantes do cinema do século XXI, ao levar a mãe à situação limite e esta terminar por asfixiar a própria filha.

Hedges prefere deixar seu personagem num ermo onde não será localizado. E em situação pior do que a da jovem francesa por não conseguir parar de se drogar, nem se livrar da perseguição do chefe do tráfico. E mais do que isto: teme ser encontrado pela da mãe e que ela não suporte vê-lo drogado e prestes a esvair. Só lhe resta a contribuição dos segundos para não ser visto sobre a lápide num canto da praça deserta àquela hora da madrugada. Hedges e seu diretor de fotografia Stuart Dryburgh o enquadram bem de perto para flagrar sua lenta agonia.

Este é o real drama social do século XXI

Assim, o espectador/a fica diante das construções milenares, que tornam a mãe o símbolo milenar da natalidade. Hedges aproxima sua câmera quando ela vê o filho estendido na lápide e transforma esta sequência numa metáfora da mulher em seu instante de mãe. Uma por ter-lhe dado a vida, a outra devido à sua capacidade de superação, mesmo em situações adversas. É a mãe que o gestou e lhe trouxe à vida, que repete o instante com uma força, confiança e poder de o reanimar que ele não se dá conta de quanta energia havia nela concentrada. Não se trata só de amor, mas de entender os mecanismos do revivescer e não desistir.

Este é, enfim, o real drama social do século XXI por abordar as contradições engendradas pelo próprio sistema capitalista. É o amplo mercado do êxtase e do prazer a se infiltrar em todas as classes sociais, para gerar lucros e lucros. Ainda que tentasse, Ben não conseguiria se libertar da teia que o pegou como consumidor-químico e o tornou parte da estrutura que abastece o vasto mercado de drogas em seus múltiplos canais de consumo em todo o Planeta. E desta forma não admite perder nem o consumidor químico e tampouco suas mulas e distribuidores de seus narcóticos. E o cinema não é só diversão, há muito, desde o filme mudo, adquiriu a capacidade de fazer rir e, ao mesmo tempo, estimular a reflexão.

O Retorno de Ben. “Ben is back”. Drama familiar. EUA. 2018. 103 minutos. Trilha sonora: Dickon Hinchliffe. Montagem: Ian Blume. Fotografia: Stuart Dryburgh. Roteiro e direção: Peter Hedges. Elenco: Julia Boberts, Lucas Hedges, Courtney B. Vance, Kathryn Newton.

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