Paraisópolis – Comuna 13, lembrando da Operação Órion a propósito do Domingão do Huck

Na Comuna 13 a opressão mudou, se transformou depois dos terríveis dias em que o Estado e os paramilitares, as forças da direita mais repressora, entraram em cada uma das casas, levando embora vidas e tornando rotina o desaparecimento de moradores

Fotomontagem feita por Artur Nogueira, com as fotos de: Luis Robayo/AFP

Que tipo de cidade queremos? Quais formas de relacionamento social e quais valores consideramos deveriam orientar a vida das pessoas nas cidades, nas suas ruas, praças, parques, nos seus centros e nas suas periferias, nas favelas, nas comunidades brasileiras, por exemplo, ou nas comunas colombianas, em Villa 31 em Buenos Aires ou em Neza, em Cidade do México?

Quando um pedaço do teto de casa cai nas suas cabeças, as pessoas se perguntam se ainda há espaços para reinventar a vida. E quem chega a lugares de extrema pobreza, mora e trabalha neles, em qualquer canto das grandes cidades da América Latina, sabe que essa reinvenção não se realiza com uma democracia deficitária e falseada, votando a cada 2 ou 4 anos. Uma revolução cidadã é uma revolução também de cidades, de serviços públicos, de água e luz, de esgoto, de moradia, de comida, de transporte, de internet, de lazer, de segurança, de um ambiente para a paz, de não violência.

Por isso, para além do imediato que é erguer o teto, no horizonte a organização e mobilização popular são fundamentais. E nesses cenários coexistem vários tipos de organizações e de mobilizações. Há várias faces no gueto, diz Loic Wacquant, entre os condenados na cidade e punidos por serem pobres.

Desde o alto há quem estigmatize: “nas favelas só moram pessoas más”. O sujeito social, enquadrado étnico-racialmente, circunscrito a um cenário socioespacial, é frequentemente demonizado, precisa, portanto, na ótica do privilegiado, ser “controlado”, “disciplinado” porque esse é o inimigo. Ali se esconde a criminalidade e “não se negocia com o mal”, dizia Dick Cheney. Fanon repondeu que o sistema é mau, e está falido. De fato, quando o sistema condena e os desterrados da terra só recebem a violência sistêmica e sistemática, contínua e lacerante, estendida e focalizada, os rejeitados do neoliberalismo, da sociedade de mercado, esse subproletariado periférico, tem todo o direito de se revoltar.

O panóptico funciona, enquanto o Estado renuncia a fornecer o auxílio de renda necessário e o substitui pela mão da polícia que mata. O colapso econômico castiga, a cultura produzida é rejeitada, o deslocamento é frequente e as agressões por disputas territoriais são parte da paisagem.

Dos variados grupos humanos a juventude é teimosa. Rebelde há quem se atreva a dar mais um passo. E quando dá o passo, a rebeldia natural encontra explicações. É o pior que pode acontecer para os donos do sistema. Que se encontre explicação racional e coerente à sensação constate de opressão e falta de oportunidades. Esse grau de entendimento não faz parte do seu script. É sabido que um jovem não apenas rebelde, mas com consciência do seu rol transformador no tempo, faz toda a diferença. Sua capacidade e potencialidade emerge e passa a organizar e encabeçar processos de mudança. Para o sistema restam duas alternativas, ou o coopta ou o combate.

No quadro, a desolação também é importante para o capital se reconstruir. Desorientar, reorientar, aproveitar o que de mais sedutor tem o sistema, que compõe o leque tático da “destruição criativa”. Destruir para criar significa trabalhar com várias versões. Distribuir armas para promover a sensação de valentia e superioridade em crianças e jovens é um caminho fácil. Torná-lo refém do crime organizado é também abandono estatal.

Porém há uma melhor versão dentro das visões da chamada “pos-modernidade” projetada: a do humanismo vulgar, que se disfarça de “capitalismo consciente”, de “capitalismo responsável” ou de “capitalismo com rosto humano”, de visão filantrópica, que seduz porque promete a melhoria instantânea. Ainda que, para isso, tenha que negociar consigo mesmo. Com o Banco Mundial a rua aparece pavimentada; o parque, a quadra, os uniformes escolares, os professores. É o Estado que, ao final, aliado ao investimento multinacional começa a triplicar lucros com concessões e projetos, a médio e longo prazo; simultaneamente, abre-se espaço à especulação imobiliária pela valorização das zonas antes esquecidas, e, claro, o pano de fundo são as novas formas de controle e disciplina, onde, reiteramos, quem não é cooptado é combatido.

O capitalismo emerge transformando a Comuna, a Favela, a Villa. No processo, se torna cúmplice de alguns atores, cria outros, os reorganiza, os coloca a seu serviço. A questão as vezes é difícil de compreender: há milícias, paramilitares, narcotráfico, formas diversas de criminalidade. Mas, ao final, a operação se leva a cabo.

O resultado – logo de meses extremamente violentos, de violações aos direitos humanos, despejos, ataques à população, estigmatização seguida de desaparecimento por membros da força pública de jovens, crianças, homens, mulheres, operações de terra arrasada, gatilho fácil na Villa, trigger-happy – é uma nova realidade que ainda sob o signo da ineficácia para a solução dos problemas estruturais, mostra um rosto moralmente mais aceitável e, sobretudo, politicamente mais sedutor, disciplinador e verticalizado no comando. A favela se incorpora à arquitetura geral da sociedade, enquadrada pelo sutil e discreto fascismo de nossos dias. Os inimigos, continuam ali porque nada estrutural mudou. Mas, há que fazer uma pergunta: quem venceu?

A filosofia da criatividade e reformulação urbana, ao amparo das milícias e das visões mais conservadoras e atrasadas, voltou à tona escutando comentários sobre uma matéria veiculada na página do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. (1) A matéria reporta à visita realizada por Luciano Huck a Medellín na Colômbia, mais especificamente à Comuna 13, no seu novo Domingão da Rede Globo.

Foto: Reprodução/Catraca Livre

Na sua visita-reportagem Huck destaca o processo de transformações do “urbanismo social” na periferia de Medellín. Ao lado de uma jovem arquiteta brasileira, conhecida pelo seu ativismo em Paraisópolis, o apresentador expõe que nas Comunas “uma mistura de políticas públicas, iniciativa privada e sociedade civil transformou uma das cidades das violentas do mundo em um modelo de dignidade e de riqueza social aos olhos do mundo”. Huck, entrevistando a um jornalista, resume que a Comuna passou por três etapas: “de horror, de dor e de transformação”. Os exemplos seguem: a integração da da Comuna 13, de 130 mil habitantes, através de metrô e teleférico. A matéria insiste em algo fundamental: a necessidade de devolver a dignidade às pessoas.

Huck precisaria falar do “horror e da dor”, que como ele bem coloca, são antes da transformação. Mas às claras o propósito da matéria consistia em estabelecer um elo entre Paraisópolis e a Comuna 13. Por isso se destaca que a Comuna é hoje um lugar turístico, de casas coloridas, com jovens fazendo demonstrações de dança nos cantos e gente subindo e descendo os quase 400 metros de escada rolante. Há quem observe admirado os murais enquanto escutam as histórias sobre a revitalização empreendida pelo governo e a iniciativa privada. Huck não é cego, nem inocente, captou com certeza o que retratam muitos dos murais.

Encurtemos a história: na Comuna 13 a opressão mudou, se transformou depois dos terríveis dias em que o Estado e os paramilitares, as forças da direita mais repressora, entraram em cada uma das casas, levando embora vidas e tornando rotina o desaparecimento de moradores. Era a Operação Orión, iniciada em 16 de outubro de 2002, a maior operação armada da qual se tenha notícia na América Latina, realizada numa favela, num complexo, numa comuna.

Dela participou a Polícia, o Exército, o serviço secreto, as forças especiais antiterrorismo, os helicópteros, as forças terrestres, as brigadas de apoio, as tanquetas, os homens de a pê, fardados, armados. A ordem foi dada pelo comandante – presidente, Álvaro Uribe, autoproclamado senhor de terra, do ar e das águas dos rios, dos lagos e mares, dono do aval dos Estados Unidos e de seu empório militar-industrial, sob cujo mandato se desenvolveram os falsos positivos, que convertiam com disfarces jovens trabalhadores, estudantes, desempregados, em guerrilheiros que “caíram em combate pela ação heroica da força pública”. E claro, participaram os grandes cúmplices nos quais se assentou o governo uribista: as milicias do narcotráfico, as da direita sanguinária condenada nacional e internacionalmente. E voltamos à pergunta: quem venceu? Pelos testemunhos dos habitantes, os de hoje e os de antes: o comando paramilitar Nutibara, o senhor da pacificação.

As digitais permanecem. Estão nos murais. No ambiente, na sensação de cuidado com o que se diz e como se diz. A impunidade se sente na voz das mães e das famílias inteiras. Hoje na Comuna 13 há arte, sim, mas há resistência e memória.

As declarações de um dos maiores milicianos do país foram muito expressivas: “nós, paramilitares, atuamos ajudando ao exército, fizemos primeiro trabalho de inteligência contra guerrilheiros, contra apoiadores de guerrilheiros, gente da esquerda”. Na Comuna desapareceram muitos, por serem da comunidade ou por serem, simplesmente “comunas”.

Ainda não aparecem os corpos de mais de 75 jovens, os dos outros apareceram no rio. Mais de 350 famílias foram deslocadas em 2018. Como pagar hoje os aluguéis de uma terra antes ocupada, mas que na destruição criativa agora tem donos, que são paramilitares ou aliados dos paramilitares? No Centro de Memória Histórica da Colômbia as denúncias são permanentes, especialmente pelo desaparecimento forçado e o ingresso da Polícia nas casas sem ordem judicial, com o acompanhamento na diligência de bandas criminais, que apontam como inimigos aqueles que não ficaram mansos pelo capitalismo da filantropia. A direita entende que a Comuna 13 melhorou e que tudo foi justo e necessário. O que aconteceu foram excessos.

Para nós, a questão é mais embaixo. Acompanhei toda a matéria do Domingão. A arquiteta corajosa diz: “a pobreza sempre vai existir”. Eu penso que talvez seja esse exatamente o ponto, a pobreza não tem porquê sempre existir, como não tem porquê existir o paramilitarismo, nem a impunidade. O recurso curinga de devastar para reconstruir ou a matéria domingueira não pode evitar uma análise das causas da degradação, da exclusão, e sobretudo, não podem deixar de registrar o direito à memória e os direitos das vítimas da Operação Orion. Faltava essa parte da história para continuar a pensar em como se reconstruir o pedaço de teto que caiu na casa.


1 https://www.caubr.gov.br/trabalho-de-arquiteta-nascida-em-paraisopolis-em-sao-paulo-ganha-destaque-na-midia/)

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