Processo de desmonte dos serviços públicos eleva número de temporários
Nas últimas décadas, à revelia da Constituição, servidores têm sido trocados por trabalhadores temporários. Dados recentes mostram salto de 52% nos municípios e de 67% nos estados
Publicado 16/05/2025 15:08 | Editado 16/05/2025 15:35

Uma das facetas do sistema neoliberal é o desmonte dos serviços públicos em favor da iniciativa privada. Esse caráter, extremamente prejudicial à população, também se reflete na substituição dos servidores públicos concursados por funcionários terceirizados e temporários.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que entre 2013 e 2023, o número de temporários aumentou 52,5% nos municípios, o que representa dois de cada dez no universo de servidores. Ainda segundo o IBGE, entre 2017 e 2021, o número desse tipo de trabalhador nos estados aumentou 67%.
Em outro recorte — tendo como base os anos de 2003 a 2022 da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e considerando todo o serviço público — o salto foi ainda mais espantoso: 1.760%.
Esse movimento não é por acaso. Uma série de medidas tomadas desde os anos 1990 contribuíram para ampliar, cada vez mais, o uso de mão de obra temporária — bem como a terceirizada — na administração pública, o que vem se refletindo, sobretudo, nos estados e municípios, onde tendem a ser maiores os entraves orçamentários.
Prevista na Constituição de 1988 como instrumento para situações pontuais ou emergenciais, esse tipo de contratação tem exorbitado esse princípio, contribuindo diretamente para a piora do serviço público. Isso porque acaba permitindo contratações nem sempre republicanas — que abrem as portas para o mau uso dos recursos públicos, as práticas clientelistas e fisiológicas —, além de aumentar a rotatividade e a quebra da continuidade de políticas e precarizar as condições de trabalho.
Trajetória a contratação temporária
Análise publicada no livro “Trajetórias da Burocracia na Nova República – heterogeneidades, desigualdades e perspectivas”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e assinada por Sandro Sacchet de Carvalho, da Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Ipea, mostra a “involução” dessa prática nas últimas décadas.
A Constituição de 1988, lembra o pesquisador, criava empecilhos para a disseminação da terceirização e contratação temporária no serviço público. Contudo, nos anos 1990, esse processo ganhou força. Ele cita exemplos de medidas neste sentido que vão desde posicionamentos tomados pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) até a Lei de Licitações de 1993, passando especialmente pela “reforma do Estado”, iniciada em 1995 pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
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Um dos marcos desse desmonte foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, válida para todos os níveis da federação. Ao impor limites ao gasto com pessoal, explica Carvalho, a lei “estimula a terceirização e as contratações sem vínculo, mediante a subcontratação de empresas e organizações sociais, contratações temporárias e emergenciais que não são computadas como gasto com pessoal”.
Especificamente no caso das contratações temporárias, o princípio constitucional que previa essa modalidade como algo excepcional, acabou sendo, pouco a pouco, esgarçado. A publicação lembra que a partir de 1995, foram editadas 46 medidas provisórias “que posteriormente originaram a Lei no 9.849/1999, a qual ampliou as possibilidades de contratação temporária, assim como também o fez a Lei 10.667/2003”.
A utilização desses servidores sem vínculo, pontua o estudo, “é mais intensa nos municípios e ocupações elementares, e no fornecimento de serviços públicos essenciais, como saúde, educação e assistência social”.
Um dos resultados desse longo processo é a precarização das condições de trabalho. “Analisando 169 acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), do período entre julho de 2019 e julho de 2020, tratando de contratações temporárias de agentes públicos estaduais e municipais, nada menos que 51% dos casos diziam respeito ao reconhecimento de direitos celetistas”, aponta.
Outro fator que piorou essa situação foi a reforma trabalhista de 2017 e seus desdobramentos, que permitiram a terceirização sem limites, não mais restrita às atividades-meio.
“Trata-se de um claro processo de precarização do serviço público, de uma transferência de patrimônio público para uso da iniciativa privada, como é o caso dos hospitais, de um alto custo financeiro para o Estado, com desvio de recursos, num ambiente promíscuo em que se confundem o privado e o público e com uma forma duplamente perversa de precarização do trabalho”, prossegue o artigo, citando análise da pesquisadora Graça Druck, especialista em relações trabalhistas.
Essa dupla precarização, completa, “cria um segmento de trabalhadores sem vínculos permanentes, com alta rotatividade e sem um conjunto de direitos” e “vai destruindo os funcionários públicos, com a redução de seu tamanho e dos seus direitos, desqualificando e desvalorizando uma categoria profissional que é essencial num Estado democrático”.
Outro passo atrás nesse sentido foi dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, no final do ano passado, considerou constitucional emenda da época do governo FHC, que acaba com a exigência obrigatória da contratação de servidores públicos pelos regimes jurídicos únicos (RJU).
Reforma administrativa
Mais recentemente, o debate voltou à tona com a proposta de reforma administrativa (PEC 32/2020), apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro, que representaria mais um ataque frontal ao serviço público das três esferas de poder.
No entanto, a partir de 2023, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, a proposta perdeu tração — a gestão tem se mostrado contrária às mudanças contidas naquela proposta.
Há poucos dias, por iniciativa do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), foi criado um grupo de trabalho para debater proposta alternativa, que poderá ser apensada à PEC.
Considerando o perfil majoritariamente de direita e anti-serviço público do Congresso Nacional, além do histórico de medidas aprovadas nos últimos anos, os debates em torno do tema não deixam de ser temerários.
Caberá mais uma vez às forças políticas de esquerda e progressistas e aos movimentos sociais e sindical mobilizar servidores e a população para pressionar o Congresso e não permitir que tais mudanças signifiquem a continuidade do desmonte dos serviços públicos e sua entrega à iniciativa privada, bem como a precarização do trabalho, sob o falso e velho argumento de se buscar a “modernização e a eficiência” da máquina estatal.