A busca de Sérgio Buarque por nossas raízes


Quando, há sete décadas, publicou Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda tinha 34 anos e se incorporava a um grupo de pensadores que, mais que interpretar o país, queria transformá-lo. Pensadores que, valendo-se da antropologia e da sociologia

Raízes do Brasil pretende revelar as nuances de uma “psicologia” do povo brasileiro recorrendo ao instrumental teórico de Max Weber e George Simmel. Sérgio Buarque considerava que existem “dois princípios” nas formas de vida coletiva, que “encarnam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador”, dos quais seriam exemplos, nas sociedades rudimentares, “os povos caçadores ou coletores e os povos lavradores”. O caçador pretende “colher o fruto sem plantar a árvore”, o trabalhador “enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar”. Os dois participam “de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das idéias”. Os portugueses que chegaram ao Brasil seriam do tipo  aventureiro e “exploraram os trópicos com desleixo e certo abandono”.
Seguindo sua visão do mundo, o autor opõe o ''aventureiro'' ao ''trabalhador'', a desordem ao planejamento (que ele valoriza nos espanhóis que colonizaram a América), o rural ao urbano etc. Inicia o livro se colocando como um degredado em seu próprio país – recurso que já fora utilizado pelo poeta inconfidente Cláudio Manoel da Costa. Daí, trechos como este: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias … somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra” (grifos meus).
Considera que os ''princípios do liberalismo''  foram ''uma inútil e onerosa superfetação'' no Brasil, descartou o fascismo dos integralistas (“Na doutrinação dos nossos ‘integralistas’, com pouca corrupção a mesma que aparece nos manuais italianos, faz falta aquela truculência desabrida e exasperada, quase apocalíptica, que tanto colorido emprestou aos seus modelos da Itália e da Alemanha. A energia sobranceira destes transformou-se, aqui, em pobres lamentações de intelectuais neurastênicos.”) e também o comunismo, “que atrai entre nós precisamente aqueles que parecem menos aptos a realizar os princípios da Terceira Internacional. Tudo quanto o marxismo lhes oferece de atraente, essa tensão incoercível para um futuro ideal e necessário, a rebelião contra a moral burguesa, a exploração capitalista e o imperialismo, combina-se antes com a ‘mentalidade anarquista’ de nosso comunismo, do que com a disciplina rígida que Moscou reclama dos seus partidários”. (Em nota escrita para a edição de 1947, aduz: “Redigidas e pela primeira vez publicadas em 1935, estas palavras já não parecem corresponder à realidade presente. Restaria saber se o zelo, principalmente sentimental, com que inúmeros de nossos comunistas seguem hoje um chefe ‘que nunca erra’ não seria a causa de tal mudança, muito mais do que a adesão consciente e refletida aos princípios marxistas” – o chefe infalível a que ele se refere é o então dirigente da União Soviética, Stalin).
Sérgio Buarque destaca que “a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’”. Mas alerta para o engano de supor que essa cordialidade signifique “‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças”. Remete a expressão “homem cordial” a Ribeiro Couto e explica que a cordialidade não abrange, “apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado”. O brasileiro é, a seu ver, portanto, passional e, nesta acepção, cordial.
Ancorado na concepção marxista, Nelson Werneck Sodré, que considerava Raízes do Brasil uma obra “inteligente de sociologia da cultura”, com “idéias curiosas”, que abria “perspectivas interessantes a respeito da vida brasileira e da composição de sua sociedade”, contestou, logo de sua publicação, algumas teses de Sérgio Buarque, como ''a de ser o Brasil o único esforço bem sucedido, em larga escala, de transplantação da cultura européia para uma zona de clima tropical e subtropical;  a de que os iberos entraram decididamente para o coro europeu, após a descoberta da América; a de que portugueses e espanhóis sentiram vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social dos privilégios hereditários, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas idéias revolucionárias; a de que uma digna ociosidade  sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português ou a um bom espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia; a de que a Abolição marcou, no Brasil, o fim do predomínio agrário, e algumas outras de menor importância''.
Registrou Antônio Cândido que vários brasileiros “aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado em função de três livros”, nomeadamente Casa Grande e senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Informa que, para comunistas e socialistas, os três livros traziam “elementos de uma visão do Brasil que parecia adequar-se ao nosso ponto de vista. Traziam a denúncia do preconceito de raça, a valorização do elemento de cor, a crítica dos fundamentos ‘patriarcais’ e agrários, o discernimento das condições econômicas, a desmistificação da retórica liberal”.
Escrevendo ao estilo ensaístico, com representações sociológicas, psicológicas, econômicas, filosóficas, Sérgio Buarque de Holanda mesclou observações agudas e sutis com a intuição do que viria a ser o desenvolvimento social do Brasil a partir daqueles anos 30 do século passado, valorizando sintomas do novo país, industrializado e moderno, que se desenhava, e percebendo a luta renhida entre os que queriam a democratização contínua de nossa sociedade e os que se valeram – e se valem, ainda hoje – do autoritarismo e da repressão aos setores progressistas para manter seus privilégios e seu domínio.

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