A carne mais barata

Do sonho ao pesadelo. O assassinato de Moïse Kabagambe é o mais puro suco concentrado de Brasil: racismo, escravidão e violência segmentada

Ilustração: Latuff

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, cantou a diva maior da música brasileira, Elza Soares, que fez sua passagem recentemente aos 91 anos. No dia 24 de janeiro, Moïse Mugenyi Kabagambe, um congolês de 24 anos foi espancado até a morte em frente a um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Bairro de ricos, novos ricos, gente brega e milicianos.

Moïse havia ido cobrar o pagamento atrasado de dois dias de trabalho. Foi espancado e morto por isso. Teve pés e mãos amarradas e teve seu corpo incessantemente moído por pauladas até a morte. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

A República do Congo é o antigo Congo Francês. Ex-colônia da França e, não diferentemente da maior parte das ex-colônias europeias na África Subsaariana, um país pobre, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de apenas 574, ocupando o 149º lugar entre 193 países. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Fugido de uma Guerra, veio ao Brasil, país vendido ao imaginário estrangeiro como uma democracia racial, como a terra de homens cordiais. País do Samba, da Bossa Nova, do Funk Carioca, da MPB, do Mangue Beat e da Tropicália, movimento que, assim como outros, evidenciou tão bem nossa miscigenação. Não coincidentemente, Tropicália é o nome do quiosque – local de trabalho e de morte de Moïse, onde queriam trabalho sem pagamento, como fazíamos até 1888. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Moïse, jovem assassinado no Rio de Janeiro I Foto: Reprodução das redes sociais

O Brasil é como diz Caetano Veloso, um dos fundadores da Tropicália na música homônima ao movimento: “A entrada é uma rua antiga, estreita e torta, e no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão… No pulso esquerdo, bang-bang, em suas veias corre muito pouco sangue, mas seu coração balança a um samba de tamborim”. E essa relação da violência, do racismo e da miséria que sempre se traveste de indiferença, mergulhados nessa suposta cordialidade entre a Casa Grande e a Senzala é a nossa marca. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

Ele e Gilberto Gil, cantam em Haiti – canção feita bem posteriormente ao movimento – o peso de ser negro, ou quase negro, ou quase branco, nesse país em que as idiossincrasias nos levam sempre a um Apartheid perfumado, de plumas e paetês, que dança samba na avenida e que sorri silenciosamente as nossas cotidianas e brutais chacinas. O apagamento de corpos pretos, levados como enxurrada para o esquecimento. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

O Brasil é como um sonho que sempre finda em pesadelo. Mas só para uma parcela muito específica da população. Nação de glebas de terras dadas aos imigrantes europeus, continua moendo quem não se encaixa nesse padrão. Padrão, sociologicamente ou matematicamente falando, é uma sequência. E aqui, ela sempre acabou no geral como abundância para os brancos e escravidão e violência para os negros e índios. 

No Brasil, o país em que pobres comem ossos, a carne mais barata do mercado é a carne negra, que enche os frigoríficos de nosso canibalismo cotidiano. Quantas já comemos hoje?

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