A causa de Milosevich também é nossa (3)

(parte 3) Um cesto de ostras
 

 

Um dos mais dantescos episódios de Kaputt, estupendo fruto literário fecundado no charco sangrento e putrefato da 2ª Grande Guerra por um dos mais cativantes escritor

Corria o mês de abril de 1941. Malaparte viajava de Belgrado a Zagreb, onde Ante Pavelich, “Poglawnick da Croácia”, “reinava com seus bandos de ustachis”. Em todas as aldeias haviam sido afixados nos muros e paredes grandes retratos seus, acompanhados dos manifestos, proclamações, editos do novo “Estado Nacional Croata”. Eclodia a primavera. Do Danúbio e do Drávia  subia “uma bruma transparente, cor de prata”. Na encosta das colinas, vinhedos e trigais “confundiam-se num jogo de luzes e sombras sob o sedoso azul do céu”. As estradas enlameadas obrigaram-no a pernoitar em Ilok, entre Novi Sad e Vucovar. No único albergue,  jantavam, em torno da mesa coletiva, “camponeses armados, policiais ostentando no peito distintivos croatas por cima de uniformes sérvios e alguns refugiados[…]”. Terminado o jantar, os viajantes sentaram-se na varanda do albergue. “O Danúbio brilhava sob a lua; víamos desaparecer e reaparecer, entre as árvores, as luzes dos  rebocadores e das barcaças[…]. Era a hora do toque de recolher. Patrulhas de camponeses amados batiam na porta dos judeus para o controle vespertino, chamando-os pelo nome com voz monótona. As portas estavam marcadas pela estrela de Davi pintada com tinta vermelha (2). Os judeus se mostravam na janela dizendo: -Estamos aqui, estamos em casa. Os camponeses respondiam: -Dobro!, dobro! (3),  golpeando a terra com a coronha de seus fusis[…]”.

 

 

 

Exausto, à meia-noite Malaparte foi dormir. Dormiu mal. Pela janela aberta via a lua erguer-se suavemente acima das árvores e dos telhados. Na fachada da casa de frente, sede dos ustachis de Ilok, exibia-se um enorme retrato de Ante Pavelichh. “O Poglawnik encarava-me com seus grandes olhos negros, profundamente cravados numa testa baixa, dura e teimosa. Sua boca era larga, lábios espessos, nariz reto e carnudo, vastas orelhas. Jamais teria imaginado que um homem pudesse ter orelhas tão grandes, tão compridas. Elas desciam-lhe até o meio da cara, ridículas e monstruosas[…]”. De madrugada, uma  companhia da Honved (polícia militar húngara) passou sob a janela, entoando seu canto “triste e cruel”.

 

 

 

Malaparte reencontrou ambos, o retrato do orelhudo Hitler da Croácia e os policiais húngaros, no mercado de Vucovar. O retrato perseguiu-o até o gabinete do retratado, instalado em Zagreb, num palácio da cidade velha. Ao dar de cara com o próprio, pareceu-lhe encontrar “um velho amigo”, conhecido “desde um tempo imemorial”. Observou de perto sua cara achatada, “de traços duros e grosseiros”, da qual emanava “um ar de estupidez indefinível”. Explicou-o “por suas enormes orelhas que, vistas de perto, pareciam ainda maiores, mais ridículas, mais monstruosas que em seus retratos”.

 

 

 

Meses depois, voltando da frente russa, de onde enviara reportagens perigosamente imprudentes para quem já passara cinco anos nas prisões de Mussolini (em síntese, mostrara porque a Rússia iria ganhar a guerra), cansado e doente, parou de novo alguns dias em Zagreb para descansar. Na noite da chegada, conversando com um amigo croata no salão do Café da Esplanada, foi descoberto pelo empavonado comandante P., ex-capitão do exército imperial austríaco, que se tornara chefe de gabinete do Poglawnik e nesta qualidade o intimou cordialmente a visitar o dono do poder local na manhã seguinte. “-Vou colocar  seu nome na lista de audiências: o Poglawnik terá prazer em revê-lo”. E em voz baixa, como se estivesse fazendo uma amorosa confidência, acrescentou: “-Grande, grande prazer!” . 

 

 

 

Ao entrar no gabinete, onde já estivera na visita anterior, Malaparte por pouco não se chocou com a mesa. “-É um  sistema que inventei” explicou Pavelich sorridente, apertando-lhe a mão. Alguém que entrasse aqui com intenções criminosas, ao se chocar com a mesa e dar bruscamente de frente comigo,  ficaria desconsertado e se trairia. É um método oposto ao de Hitler e de Mussolini, que deixam entre eles e seus visitantes o espaço vazio de uma sala imensa”. Enquanto ele falava, o visitante observava as profundas mudanças fisionômicas que sofrera. Só a voz se mantivera grave, musical, extremamente doce. “Voz de um homem simples, bom, generoso”. Já as orelhas “tinham emagrecido prodigiosamente”. Observando “suas grossas mãos peludas, sua fronte baixa, dura, cabeçuda, suas orelhas monstruosas”, Malaparte sentiu “uma espécie de piedade por aquele homem simples, bom, generoso, rico de um sentimento humano tão delicado”. É que a situação política, desde sua anterior visita, tinha se agravado singularmente. “A revolta dos camponeses crepitava em toda a Croácia, de Zemun a Zagreb. Uma profunda, uma sincera dor, escavava a fisionomia pálida […]do Poglawnik. Como ele deve sofrer, pensei, esse coração de ouro!”.

 

 

 

A conversa foi interrompida pela chegada do representante diplomático de Mussolini, Raffaele Casertano. Entrou imediatamente: estava em casa.  A conversa girou em torno da atualidade. “Os bandos de partisans (4), de noite, atacavam até nos subúrbios de Zagreb. Mas os fiéis ustachis de Pavelich logo poriam fim a essa incômoda guerrilha”. “-O povo croata”, dizia este, “quer ser governado com bondade e com justiça. Eu estou aqui para garantir a bondade e a justiça”.

 

 

 

Enquanto ele falava, Malaparte observava um cesto de palha colocado sobre a mesa. A tampa estava levantada: via-se que o cesto estava cheio de frutos do mar. Pelo menos foi esta sua primeira impressão. “Pareciam ostras, mas retiradas de suas cascas, como vemos às vezes em grandes bandejas, nas vitrinas de Fortnum and Mason, em Picadilly, Londres”. Casertano, perguntou, dando-lhe uma piscada de olhos: “-Que tal uma bela sopa de ostras?” Malaparte perguntou se eram ostras da Dalmácia. O Poglawnik destampou de vez o cesto e, mostrando aqueles frutos do mar, aquela massa de ostras viscosa e gelatinosa, respondeu “com um sorriso, seu bom sorriso cansado: -É um presente de meus fiéis ustachis; são vinte quilos de olhos humanos”. Arrancados dos partisans e de outros comunistas prisioneiros.

 

 

 

                            
PS: Meu amigo Mauro Castelo Branco, que teve a paciência de ler com vagar o fascículo precedente desta série, assinalou-me que estava incompleta a data da reunião clandestina do bureau político do CC do  Partido Comunista da Iugoslávia que formulou o apelo à luta armada contra os ocupantes nazistas. A reunião ocorreu no dia 22 de junho de 1941.

 

(continua)
 

 

Notas
 

 

(1)- O relato resume o capítulo 13 de Kaputt, “Um cesto de ostras”,  título que  retomamos em epígrafe. As passagens entre aspas são de Malaparte..

 

 

 

(2)- Intervencionistas alemães acusaram os sérvios de ter colocado um “S” em suas casas no Kosovo para se distinguir dos albaneses. Imputar a outros povos os crimes cometidos por seu próprio povo é uma velha impostura que a intoxicação mediática ajudou a voltar à moda. Foram os fascistas croatas,  como testemunha Malaparte, que introduziram o método alemão na Iugoslávia. Quanto ao Kosovo, os traficantes de droga do ELK, protegidos pela força de ocupação da OTAN,  mostraram, para massacrar sérvios indefesos, a “valentia” que lhes faltou  na hora de enfrentar um combate frontal.

 

(3)- Equivale ao nosso “tudo bem”.

 

 

 

(4)- O termo italiano “partigiano”, bem como o francês “partisan”, corresponde a “guerrilheiro”, designando notadamente as formações de combate que resistiram aos nazistas e fascistas. Quando os exércitos estadunidenses conquistaram a Sicília em 1943, serviram-se da máfia para  reprimir os “partigiani” comunistas. São célebres (para os comunistas da velha guarda) os versos de um canto da heróica  resistência soviética, que reproduzo em francês, ignorante que sou da língua russa:

 

“À l’appel du grand Staline

 


Se levaient les partisans”.   

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