A China e a “nova luta pelo socialismo” (3)

Os crescentes fluxos comerciais advindos da China, em somatória com uma cada vez maior capacidade financeira de intervir em diferentes e longínquos pontos do globo vão impondo (de forma lenta e gradual) uma nova ordem financeira no mundo. Ordem financeira

Da premissa acima exponho que – ao contrário de muitos sonhadores – não acredito que a transição capitalismo – socialismo em âmbito mundial tenha como epicentro político a organização de um “movimento social mundial anticapitalista” organizada por alguns (até centenas ou milhares) combatentes sérios reunidos em um Fórum Social sediado n’algum canto do planeta. Infelizmente, pois tanto a natureza quanto a sociedade são regidos por leis que estão fora do escopo de alteração por parte do homem.


 


Assim sendo, compreendendo a questão nacional como a “ante-sala do socialismo”, especulo que a China – e seu arranque desenvolvimentista, a robustez de seu mercado interno e, principalmente, seu crescente poderio financeiro – é a grande condição objetiva à solução de pendências nacionais mundo afora. A assimilação científica deste processo passa pela retomada de um debate cujo objetivo é conceituar a historicidade da questão nacional no Brasil e no mundo e o papel cumprido atualmente pela China a partir de suas já citadas intervenções comerciais e financeiras por continentes como a África a América Latina (1).


 


 



Questão nacional e a “lei da simultaneidade”


 


 


Conceitual a questão na periferia passa – ao meu ver – por uma assimilação crítica de conceitos marxianos, o principal deles acerca da seqüência dos modos de produção como expressão do nível – historicamente dado – do nível do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade desde seus primórdios. A assimilação crítica é fundamental na medida em que se percebe que a história universal vista aos olhos de Marx é um retrato fiel da evolução dos modos de produção na Europa. Tal desenvolvimento europeu deu-se de forma autônoma, independente de variáveis externas. Esse é um ponto a ser levado em conta (2).


 


 


Logo, o papel cumprido pela China na atual transição em curso pode-se basear na constatação de que a história da evolução na periferia (desde sempre) não é um retrato fidedigno da evolução na Europa, pois na periferia a evolução não é um produto exclusivo de forças endógenas, e sim algo em consonância (em toda medida influenciada) com o desenvolvimento verificado nos centros hegemônicos. A melhor compreensão disto é facilitada pelo estudo das formas de como o Brasil reagiu à crises como as ocorridas no último quarto do século 19 e a crise de 1929 e relaciona-las com as mudanças qualitativas no âmbito de nossa superestrutura (Proclamação da República e Revolução de 1930) e no âmbito da base econômica (processo de substituição industrial de importações).


 


 


Logo, sabendo-se que as transições na periferia obedecem a duas ordens de fatores, uma interna e outra externa, é válida a idéia que subdivide o conceito marxista de relações de produção em duas partes relacionadas: as relações externas de produção e as relações internas (3). Desta forma diagnostica-se que não somente no Brasil, mas em toda periferia a questão nacional é determinada por demandas históricas (a questão nacional brasileira hoje é relacionada com nossa libertação do jugo do capital financeiro norte-americano, da mesma forma que em 1930 tal relacionava-se com nosso desgarramento do capital industrial inglês) e tem dupla face: uma interna e outra externa (4). Sendo que o aspecto principal da contradição principal reside no desatamento externo do problema. Essa é a essência de uma chamada “lei da simultaneidade”, que prescreve “hecatombes externas” como um sinalizador de transformações internas no âmbito da periferia. Tais transformações podem redundar em evoluções do tipo Revolução de 1930 (Brasil) ou contra-revoluções como as vividas na década de 1990 no Brasil e no mundo (5).


 


 



Crises reflexas e história


 


 


A lei da simultaneidade pode ser constatada atualmente nos reflexos na periferia de crises como a financeira asiática de 1997 e na recente crise no mercado imobiliário dos EUA. Assim como nas oportunidades abertas com a ascensão econômica chinesa, obrigando muitas nações periféricas a programarem suas economias (e seus índices futuros de crescimento) em acordo com suas capacidades internas de atender a crescente demanda chinesa por matérias-primas e manufaturas semi-acabadas.


 


 


Tal – e mesma – lógica “simultânea” foi a que regeu o desenvolvimento da periferia colonial e semi-colonial no século XIX, onde países como o Brasil tiveram de se programar para atender o aumento da demanda inglesa por produtos primários. No nosso caso, não apenas programamos nossa oferta de produtos como abrimos nosso país à etapa mercantilista do desenvolvimento capitalista, daí ter sido nodal nosso rompimento com o capital mercantil português em 1822.


 


 


A compreensão da historicidade das transições mundo nos leva, como já repetido a especular acerca de um novo ciclo de transições qualitativas no mundo tendo como centro as oportunidades de comércio abertas com a ascensão chinesa em contraponto ao poderio norte-americano. Nunca é demais lembrar que é no campo da história – e não no campo da vontade humana – é que se deve dar tal exercício de abstração.


 


 



Comércio exterior e transição na periferia


 


 


Cientificizar a “nova luta pelo socialismo” em nossos dias passa por compreender o nível em que se dão as relações internacionais contemporâneas. Principalmente após o surgimento do capitalismo como modo de produção, de modo que Marx concluiu que a transição ao socialismo no mundo passaria pelo aparelhamento de um “centro dinâmico socialista” nucleado por França, Alemanha e Inglaterra. Ora, explicitamente a transição, vista historicamente, é motivada por movimentos gravitacionais do centro à periferia. E, desde a invenção da roda as relações políticas entre nações diferentes são expressas sob forma de crescentes relações comerciais e, atualmente, de cada vez maiores movimentações financeiras.


 


 


Sabendo-se que a periferia do sistema é onde se guardam grandes reservas revolucionárias, e analisando as relações comerciais como expressões de relações políticas, constatamos que a Idade Média a variável comércio exterior foi somente aos poucos transformando-se em variável a se considerar em equações políticas. Na periferia é diferente, o comércio exterior foi o primeiro peão do jogo de xadrez a se considerar. Mais, o ato histórico do descobrimento ou desbravamento de países como o Brasil e a China são acidentes históricos onde o comércio exterior tornou-se o motor primário do processo.


 


 


Pois bem, além dos exemplos expostos sobre as transições no Brasil, interessante notar que após o fracasso da revolução alemã no final da década de 1910 e percebendo o isolamento político e comercial da Rússia, Lênin (ao mesmo tempo em que lançou a NEP e amplo programa de concessões à empresas estrangeiras) vaticinou que “a guerra dos canhões e tanques foi substituída pela guerra comercial” (6). Desde então a história do século XX vem provando que o campo comercial transformou-se no novo front da luta-de-classes em âmbito internacional. Prova disso é a pressão do imperialismo sobre a taxa de câmbio chinesa e a contra-ofensiva chinesa em adquirir bilhões de dólares da dívida pública norte-americana e utilizar isto como arma a ser utilizada quando lhe convier. Outro exemplo: é comercialmente que a Revolução Cubana sofre tentativas de asfixiamento por parte do imperialismo e é comercialmente que Cuba cobra novo fôlego para sua gloriosa experiência socialista.


 


 


Para o caso brasileiro é cada vez mais claro que a solução de nossa presente questão nacional passa pela “quebra” do circulo vicioso (que já foi virtuoso) da dependência do mercado norte-americano em favor do direcionamento de nosso comércio no rumo da África, Índia e China. E, de forma geral, tanto para o Brasil, quanto para a periferia o redirecionamento (planificação) do comércio no rumo da China é parte de um todo que envolve a constituição de um “Capitalismo de Estado” que para Lênin é a formatação econômica mais nítida da transição capitalismo – socialismo em âmbito mundial.


 


 



A China e seu poderio comercial e financeiro


 


 


Muito mais letal para o imperialismo do que financiar guerrilhas falimentares e/ou grupelhos sectários, é o poder comercial e financeiro crescente da República Popular da China. Poder este cada vez mais capaz de quebrar paradigmas institucionais que se transformaram em elementos contencionadores do desenvolvimento das forças produtivas na periferia. Tais instrumentos (FMI e Banco Mundial) com o “salve-se quem puder” da guerra comercial interimperialista serviram inclusive de instrumentos a favor do estrangulamento financeiro e conseqüente acoplamento de mercados às multinacionais da Tríade (EUA, Japão e Europa) em corpos continentais como a América Latina e a África.


 


 


O poder de fogo chinês nesta contenda é baseado em uma história de quase 4.000 anos de formação de uma economia interna de mercado, de sua milenar capacidade de vencer contendas sem a necessidade de impor o poder das armas. Com mais de US$ 1 trilhão em reservas, com empresas estatais cada vez mais aparelhadas (à moda alemã indicada por Lênin: “formação de grandes conglomerados industriais), uma estratégia definida e uma tática pautada pela necessidade de aliados nos quatro cantos do mundo, a China transforma sua capacidade financeira fortalecida por superávits comerciais com a Tríade para planificar déficits comerciais com a periferia e assim criar um campo de forças que isole – no longo prazo – seu inimigo principal, os EUA.


 


 


Seu poderio financeiro é utilizado como parte de uma política planificada de comércio externo permitido pelo nível de suas reservas cambiais e desenvolvimento das forças produtivas de forma que em troca de matérias-primas a China concede créditos para serem pagos com juros mínimos. No campo da exportação de serviços também se dá tal política. A título de exemplo exponho a troca da reforma de toda a linha rodoviária do Gabão por gás natural produzido por lá. Semelhante acordo foi fechado com Angola e Zimbábue. A quebra dos paradigmas institucionais de Bretton Woods é possibilitada com a concessão de créditos para países como a Nigéria da ordem de US$ 4 bilhões e com Angola da ordem de US$ 2 bilhões. Ambos acordos fechados em 2004 prevêem a troca do crédito por petróleo em dez anos com juros de 1% ao ano (7). Esse é o motor que leva à África Subsaariana a crescer, nos últimos anos, de forma mais robusta do que países como o Brasil.


 


 


O elemento mais interessante deste tipo de acordo é a não existência de condicionalidades à concessão destes créditos. Não se prevê nos acordos a implementação de políticas “estabilicionistas”, com a previsão de formação de superávits primários, nem de cortes de gastos. Abrindo parêntese, enquanto a proposta de Toni Blair de perdão da dívida externa dos países mais pobres do mundo foi amplificada aos quatro ventos por nossa imprensa colonizada, a China perdoou uma dívida externa da ordem de US$ 5 bilhões dos países africanos para com ela e baixou a zero suas alíquotas internas de importação aos países mais pobres do mundo. Nossa imprensa esqueceu de explicar que a proposta de Blair previa a contrapartida sob a forma de abertura comercial. Lobo em pele de cordeiro.


 


 


Por outro lado, muitos países africanos estão tendo acesso à tecnologias jamais sonhadas. O aparelhamento de refinarias em Angola com tecnologia chinesa, mas de propriedade angolana, a construção da maior fábrica de processamento de alimentos da África em Moçambique e a edificação de mais de 1000 hospitais pelo governo chinês é prova da diferença das relações da China com a África em detrimento das relações perpetuadas pelos atuais defensores dos “direitos humanos” e da “democracia” europeus e norte-americanos que transformaram a África em algo que nem uma biblioteca inteira de livros de horror seria capaz de demonstrar.


 


 


Evidente que esse processo não se dá livre de tensões e contradições entre a parte chinesa e seus parceiros da periferia. Nada fora do normal. Porém longe de assertivas acerca de uma política imperialista chinesa. Algo, no mínimo, fora do cabimento para quem conhece a história da formação da nação chinesa e suas relações históricas com seus vizinhos.


 


 


Uma luta-de-classes razoável tem neste campo financeiro (China x expressões financeiras do imperialismo no FED, FMI, Banco Mundial…) uma grande reserva de mercado para a produção de pesquisas interessantes sobre a consolidação do socialismo e seu futuro em âmbito mundial.


 


 



O exemplo que vem da China


 


 


A China segue seu rumo e não somente países africanos se beneficiam dele. Atualmente um grande processo desenvolvimentista ocorre na República Socialista do Vietnã que cresce a média de 8% ao ano. No Vietnã, a título de exemplo, cerca de 40% dos investimentos em infra-estruturas são financiados por empresas chinesas (8). Já me referi anteriormente aos acordos e créditos chineses para Cuba, o papel estratégico como substituidor dos EUA na compra do petróleo venezuelano e em crescentes investimentos com transferência de tecnologia à Bolívia.


 


 


Assim, em minha opinião, fica muito clara a relação entre poderio comercial e financeiro chinês com a solução de questões nacionais pendentes na periferia. Repetindo, se é atual relacionar a solução da questão nacional como um estágio político que abre portas à edificação do socialismo, está cada vez mais patente que da China estão surgindo as condições objetivas externas à “nova luta pelo socialismo”.


 


 


Goste ou não goste a sociologia e a ciência política produzida no eixo Rio-SP.


 


 


Em nossa próxima conversa procurarei demonstrar o exemplo que vem da China para a periferia no que cerne avanços nas condições de vida de sua população e a capacidade de governança de seu partido dirigente, o Partido Comunista da China (PCCh).


 


 


 


 


Notas:


 


 


(1) O “Pensamento Independente de Ignácio Rangel” é a base teórica utilizada em toda a argumentação apresentada neste artigo.


 


(2) O “eurocentrismo” de Marx é plenamente justificável dada a realidade objetiva com que nosso maior pensador se defrontou. Sobre isto sugiro a leitura de: LOSURDO, Domenico: “Liberalismo – entre a civilização e a barbárie”. Anita Garibaldi, 2006.


 


(3) Daí a máxima da Terceira Internacional de a revolução na periferia ter caráter antiimperialista e antifeudal.


 


(4) Sobre esta dupla face da questão nacional sugiro: RANGEL, Ignácio: “Revisitando a ‘Questão Nacional’”. In. Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Vol. 2, págs. 115-125. Contraponto, 2005.


 


(5) Esta expressão “lei da simultaneidade” foi criada por Ignácio Rangel em 1953 e pode ser encontrada em: RANGEL, Ignácio: “Dualidade Básica da Economia Brasileira’”. In. Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Vol. 1, págs. 285-352. Contraponto, 2005. Tal lei corrobora a genial constatação de Lênin do caráter “desigual e combinado” do processo de desenvolvimento do capitalismo em âmbito mundial. Por outro lado é importante salientar que nem em todo lugar as reações aos ventos externos são semelhantes. Por exemplo, no Brasil, enquanto a Revolução de 1930 redundou na tomada do poder por latifundiários feudais voltados ao mercado interno, logo dando início a uma industrialização de tipo “via prussiana”, na Argentina sua “Revolução de 1930” não teve a mesma conseqüência, pois o pacto de poder instituído por lá preferiu se inserir na divisão internacional do trabalho capitaneado pela Inglaterra, logo ocupando espaço no suprimento ao mercado inglês de produtos primários em troca de um assento no banco das “ex-colônias” inglesas na Commonwealth.


 


(6) LÊNIN, V.: “Reunião de ativistas da Organização de Moscou do PCR (b). Relatório Sobre as Concessões”. In, Obras Completas, t. 42, pp. 75-77”.


 


(7) PAN, Esther: “China, Africa, and Oil”. 26/01/2007. Disponível em: http://www.cfr.org/publication/9557/



 
(8) OLIVEIRA, Amaury P. de: “O Vietnã volta a estar em foco”. Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto. Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.

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