A estrela e a invisibilidade social

Reflexões sobre ‘A Hora da Estrela’: a representação de vidas invisíveis e a busca por sentido em meio à marginalização

Imagem do livro "A hora da estrela"

“A Hora da Estrela” é o último livro publicado em vida de Clarice Lispector, em 1977 (há um póstumo chamado “Um sopro de vida”). Clarice, uma das maiores escritoras brasileiras, nasceu na Ucrânia em 10/12/1920 e chegou ao Brasil com a família em março de 1922. Sempre se identificou como brasileira, embora tenha sido considerada uma estrangeira, residindo na obra em revista o sentimento de estranhamento, de não fazer parte do meio, uma inquietude constante na personagem com uma rotina inescapável, uma dor surda, a busca de sentido para a vida. Drumond (2010) destaca que: “a ‘Hora da Estrela’ foi deixada por Lispector como prova do salto que fez de sua inflexão intimista para a leitura desafiadora da realidade” e Cordeiro (2017), afirma que “Depois de ‘A Hora da Estrela’, Clarice retira-se de cena, como que num gesto de desistência de tentar entender-se, de tentar entender a vida e sua dor, cessa sua busca desesperada de seu eu.”

No filme, de 1985, dirigido por Suzana Amaral, inspirado no livro “A Hora da Estrela”, a personagem central Macabéa, interpretada pela notável Marcélia Cartaxo, está para mim como instigante obra. Na filmografia de Amaral, as mulheres são protagonistas nas mais diversas esferas da vida – pessoal, familiar, amorosa, profissional, educacional, política. Assim, Clarice, Suzana e Macabéa se encontram, guardam entre si aproximações e sentimentos presentes no cotidiano de milhares de mulheres.

“23 horas, 10 minutos, zero segundo. Você sabia que a mosca é um dos insetos mais ligeiros e que, se pudesse voar em linha reta, levaria 28 dias para atravessar o mundo todo? Você sabia? Rádio Relógio. 23 horas, 11 minutos, zero segundo…” Essa era uma das horas da estrela Macabéa, fã da antiga “Rádio Relógio” do Rio de Janeiro. A hora certa, uma curiosidade, a vinheta, a hora certa de novo, e assim por diante, sem músicas nem notícias.  Macabéa, vinda das entranhas do Brasil para a cidade grande, parecia também uma curiosidade.

A produção foi o primeiro longa de Suzana Amaral (1932-2020), que em novembro de 2015 passou a constar na lista da Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos 100 melhores filmes brasileiros.  Suzana, autora de vários pequenos trabalhos, dirigiu esse longa aos 50 anos de idade; faleceu em 2020, aos 88 anos.

A atriz Marcela de Souza Cartaxo, natural de Cajazeiras (PB), foi descoberta por Suzana em meio a grupos de teatro do Nordeste. A atuação como Macabéa lhe rendeu diversos prêmios, como o Urso de Prata do Festival de Berlim (primeira brasileira a ganhá-lo). Protagonizar filme tão envolvente propiciou a Marcela uma primeira consagração e passaporte ao mundo da arte.

Macabéa vive uma existência insignificante e miserável, órfã de pai e mãe, criada por uma tia, que a maltratava. A jovem vai para o Rio de Janeiro, morando em uma pensão, dividindo o quarto com mais três moças. Consegue emprego de datilógrafa em um pequeno escritório, com salário irrisório. Nessa firma, trabalha também Glória (Tamara Taxman), uma carioca expansiva, o oposto de Macabéa, que é tímida, solitária, mal nutrida (sua habitual refeição era pão com salsicha e coca-cola, lanche barato).

A valorização do corpo, da estética, é um acento nesse filme, uma vez que Glória, mesmo na vestimenta, destoa muito de Macabéa; o que chama atenção de Olímpico de Jesus (José Dumont), único namorado de Macabéa. Olímpico, nordestino, trabalha como operário, é ignorante e  responde com brutalidade às perguntas ingênuas feitas por Macabéa, a partir da audição das “curiosidades” da Rádio Relógio.

A emissora fundada em 1956, nos 580 Khz do dial, é o passatempo de Macabéa, parece ser sua única companhia. Locutores e a solitária ouvinte acumpliciavam-se nos arrastados minutos e Macabéa, depois, ia entreter autênticos monólogos com o namorado, uma vez que ela faz perguntas a Olímpico, que, não querendo aparentar ignorância, replica de modo ríspido. Curiosa, não satisfeita com as respostas vazias de Olímpico, ela sofre uma repreensão, ao inquiri-lo sobre o que é “eugebra” (álgebra) – o áspero namorado não sabe, diz que é coisa de “fresco”, para ele um palavrão e não é coisa de moça direita. Inculto e grosseiro, o operário sonha em ascender socialmente até tornar-se deputado, fazendo discursos nas praças e impressionando Macabéa.

O único carinho real que Macabéa recebe é da cartomante Madame Carlota (Fernanda Montenegro), que lhe vaticina uma chance de felicidade, tecendo elogios e palavras de afeto. É o único momento do filme em que Macabéa sorri, mostrando uma esperança nunca antes expressa. A Macabéa da inocência invencível parece outra.

Os minutos passam, insossos, pela Rádio Relógio, aproximando-se insensivelmente da hora da estrela.  “São zero hora, zero minutos, zero segundos. Você sabia…”

Drumond (2010) diz: “são milhares de Macabéas, forjadas numa saga que alia trabalho, pobreza, família, sexualidade, tempo; num movimento de produção e reprodução de vidas que se insurgem, mesmo que maneira anônima, à imposição do mando de um tempo controlado, vigiado, disciplinador?”

Quantas Macabéas espalhadas no cotidiano de nossas cidades? Quantas mulheres pobres, mesmo  miseráveis, invisibilizadas, migrantes, em situação de rua, periféricas, que mal têm consciência de existir, mesmo que resistam no dia a dia, arrastando-se ou a cada amanhecer retomando a custo sua simplíssima existência? E que, em geral, recebem de resposta a indiferença e até mesmo o desprezo arrogante. Buscamos outro tipo de sociedade em outro estágio civilizatório, avançado, plena de justiça social, de solidariedade de classe e de valores humanistas.

Referências

CORDEIRO, Gleyda. A representação feminina em A Hora da Estrela: uma análise comparativa das obras fílmica e Literária. https://abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522197573.pdf

DRUMOND, Nagyla. A saga de Macabéa continua: trabalho feminino, gênero e uso do tempo entre as “novas” operárias no interior do Ceará/ Brasil. ARQUIVO_FazendoGenero9-texto.pdf

LISPECTOR, Clarice.  A Hora da Estrela. Rio de Janeiro. Editora Rocco: 1997.

A hora da estrela. https://abraccine.org/2015/11/27/abraccine-organiza-ranking-dos-100-melhores-filmes-brasileiros/

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