A excelência de Tolstói hoje

Ler esse gênio da humanidade é como aprender o mundo num salto de conhecimento, e por alcançar esse ponto mais alto querermos outros saltos

Escritor Liev Tolstoi | Foto: Reprodução

Estava até agora sem saber para onde ir, sobre o que escrever. Primeiro, na véspera, esbocei um texto cujo título era “Bolsonaro, o imbrochável”. E já sabia a conclusão que viria: Bolsonaro só é imbrochável no sentido de que todos os dias ele fode o povo brasileiro. Mas isso era o mesmo que combater a baixeza com as armas da baixeza, me parece. Depois, na quinta-feira, a rainha Elizabeth 2ª morreu. Foi um deus nos acuda. Procurei uma saída honrosa. Talvez eu pudesse desenhar a visita da rainha ao Recife em 1968. Mas seria impossível não mostrar o ridículo dos súditos da rainha nos trópicos do Recife. Então eu olhei para o calendário deste dia, e vi que hoje é o dia do nascimento de Tolstói. Viva o seu dia!

Começo pelo trecho de uma carta à esposa, que o gênio absoluto escreveu, segundo a grande biografia de Pável Bassinki, Tolstói- A fuga do paraíso:

“A minha escrita sou eu mesmo, por inteiro. Em minha vida exterior, não pude expressar meus pontos de vista por completo. Na vida externa, faço concessão à necessidade do convívio em família, mas por dentro eu nego toda essa vida”.

Então recuperemos linhas que guardei sobre a sua literatura.

Como é bom reler Tolstói! Ele é um autor que nos enche as medidas, que nos alimenta e nutre numa carência insatisfeita satisfeita contínua. Ler esse gênio da humanidade é como aprender o mundo num salto de conhecimento, e por alcançar esse ponto mais alto querermos outros saltos. Tolstói, para o artista que está dentro de todo homem, em todos os tempos, é um autor imprescindível, sem o qual seremos todos menores, menos homens humanos.

Não quero, pelo menos como projeto, falar sobre Ana Karenina, Guerra e Paz, A morte de Ivan Ilitch, A sonata a Kreutzer, e de contos de Tolstói, relatos magníficos, perturbadores, que marcam o espírito do leitor como uma experiência de choque e estremecimento, inesquecíveis. “Magníficos, perturbadores, inesquecíveis” tudo não passa de adjetivos, que nada dizem para quem não conhece Tolstói, e muito menos dizem para quem o conhece, se não se colam como carne e músculo no esqueleto da citação do escritor. Tentarei chegar a esse ponto. Adjetivos ou são apropriados ou nada são.

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Esclareço agora mais precisamente o ponto. De todas as leituras que fiz sobre Tolstói para entendê-lo, para ter respostas a “quem é esse louco? de que natureza é feita essa percepção?”, de tudo com que pretendi apreendê-lo, naquela vã vontade de tomá-lo como se pega em bola de sabão, nada mais concreto e complexo se compara ao que sobre Tolstói escreveu Máximo Gorki no livro Três Russos. Atenção, escritores de todas as tendências, atenção, leitores ávidos de conhecimento, atenção, amantes de todas as literaturas, vocês não verão nenhum livrinho, de análise viva e aguda, tão precioso quanto esse livro. De Thomas Mann a André Maurois, das vanguardas russas às europeias, das modas de todo mundo universitário às escolas mais rebeldes, todos reconhecem o valor de Três Russos, de Máximo Gorki. Os três russos do livro são, apenas: Tolstói, Tchékhov e Andreiev. Entendam a razão. Cito com prazer, digito com paciência frases referentes a Tolstói:

“Uma tarde, ao crepúsculo, ele lia, piscando os olhos e remexendo as sobrancelhas, uma variante da cena do Padre Sérgio, em que uma mulher se dirige à casa do eremita para seduzi-lo. Quando acabou de ler, levantou a cabeça e, fechando os olhos, pronunciou distintamente:

– Escreve bem isto, o velho! Muito bem!

Isso nele foi de tão admirável simplicidade, sua admiração pela beleza era tão sincera, que não esquecerei jamais a alegria que senti nesse momento, uma alegria que eu não podia nem sabia exprimir, mas que tive também grande pesar em reprimir. Por um instante meu coração cessou de bater, mas depois tudo, em volta de mim, se tinha tornado novo e de um vivificante frescor”.

No Padre Sérgio, o relato a que Gorki se refere, há uma intensa e tantalizante cena de sedução do padre, um eremita, que no vigor dos 49 anos quer se entregar de corpo e alma a seu Deus, recolhido em retiro. No entanto, uma bela e rica mulher, por diversão, aposta e leviandade quer testar em um só golpe a própria beleza e a dedicação do eremita.

“- Você não entrará aqui? – perguntou a mulher, rindo-se. – Vou tirar a roupa pra secar.

O padre Sérgio não respondeu e continuou rezando suas orações do outro lado do tabique, com a mesma voz tranquila.

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‘Este, sim, é um verdadeiro homem’, pensou ela tirando com dificuldade a bota molhada. Mas por mais que tentasse, não podia tirá-la bem, e isso lhe pareceu engraçado. Riu baixinho, mas sabia que ele ouvia o seu riso, e que esse riso influía nele do modo que ela desejava. Então riu mais alto, e aquele riso alegre, natural e bondoso influiu realmente sobre o padre Sérgio tal como ela queria.

‘A um homem como este se pode amar. Que olhos ele tem! E que rosto mais aberto, mais nobre e mais apaixonado, mesmo que reze muitas orações – pensou ela. As mulheres não nos enganamos. Tão logo ele aproximou o rosto no vidro da janela e me viu, eu o entendi e soube. Eu li no brilho dos seus olhos. Ele me amou, me desejou. Sim, ele me desejou’, dizia, tirando por fim a bota e depois as meias. Mas para tirar aquelas compridas meias, presas em ligas, tinha que levantar a saia…”.

E mais não falo do Padre e do castigo violento que ele se impôs, como uma confissão de derrota ante a força do sexo. O ato do padre, na violência que se faz, é de aparente desobediência ao impulso irreprimível da carne, como uma lava de vulcão contra a própria incapacidade de abafar o sexo como ele queria. Isso chama a atenção para o criador complexo em Tolstói. Ele realiza uma narração impiedosa e captadora do movimento do real, ao mesmo tempo que narra ao lado, ou nas entranhas, por sugestão ou arte do diabo, suas convicções moralistas, aqui e ali se confundindo com um pregador de uma nova igreja. Notem como ele critica uma personagem de Gorki, num primeiro e franco contato:

“Tolstói me fez sentar à sua frente e se pôs a falar de Varenka Olessova e de Vinte e seis e uma. Fiquei atordoado pela voz dele, de tal modo falava crua e brutalmente demonstrando que o pudor não era próprio da natureza de uma jovem sadia:

– Uma moça que passou dos quinze anos, que tem um bom físico, deseja que a beijem, que mexam com ela. A razão dela teme ainda o desconhecido, o que ela não compreende, e é o que se chama de castidade, pudor. Mas a carne já sabe que o incompreensível é inevitável, legítimo, e exige que a lei se cumpra, a despeito da razão. No entanto, em casa essa Varenka, que você descreve como boa e forte, tem sensações de anêmica. Isso é falso! ”

Foto: Reprodução

Dir-se-ia, nessa crítica forte, que ele era um realista sem freio, ou, pior, um naturalista, ou mesmo, numa miserável caricatura, um criador devasso. Mas o que dizer, para ficar no mais simples, do seu conto Os três Anciãos, que em algumas editoras chamam de Os três Eremitas? É um conto breve e cortante como quicé, a nos derrubar pela graça, ainda que pregue o valor de um milagre gerado pelo amor absoluto a Deus. Só lendo para sentir como a mão do mestre põe três velhinhos a caminhar sobre as águas na maior naturalidade. É comovente a ideia que a narração nos deixa, ao opor a ingenuidade de três velhinhos simples, ignorantes dos rituais e das exterioridades da Igreja, e que, por isso mesmo, conseguem maravilhas. Nesse conto, Tolstói nos põe naquele reino do maravilhoso que é, apesar da maravilha, terreno e cruel, à semelhança do conto de A pequena vendedora de fósforos, de Andersen, onde uma criança, faminta, sobe e vira estrela na noite de Natal.

A lembrança da narrativa curta ‘Os três Eremitas’ nos faz chegar a um conto que é uma revelação. Fala-se tanto no imenso romancista, que até parece não existir um prosador magnífico em narrações breves. É natural que o Tolstói romancista receba com frequência um merecido destaque. Afinal, Guerra e Paz, Ana Karenina são livros que estão em um dos pontos máximos do romance mundial. Mas aqui, ao mesmo tempo em que se destaca, comete-se uma severa injustiça. A mesma daquela que realça o mais proeminente em um homem, para daí se esquecer o valioso que não tem a mesma presença, de império avassalador. Não só de tronco, pernas e cabeça se faz uma pessoa. Às vezes há uma infinita e complexa delicadeza no traço das mãos. Quero me referir ao conto Depois do baile. Penso que um escritor, depois de escrevê-lo, poderia dizer-se, “cumpri o meu dever, todos os meus pecados foram pagos”.

Falo desse conto sem o ver, somente com a impressão que me ficou e me acompanha até hoje. Nele se ressalta uma imensa vergonha por um ato desonroso, que é mais sensível em pessoas que acabam de se acovardar, por egoísmo ou medo. O leitor acaba o conto e em vez de jogá-lo a um canto, pergunta-se a si mesmo, como eu me perguntei e me pergunto até hoje: “quantas vezes isso já não ocorreu a mim nos meus dias?” Então a imensa desonra do personagem passa a ser do leitor também, porque, afinal, todos cometemos pequenas ou grandes indignidades. E que disfarçamos com discursos enganadores. A segunda impressão, mas dessa vez feliz, que me deixou Depois do Baile foi a idade do autor quando o escreveu: 75 anos. Que coisa bonita e que esperança ele plantou em nossos corações, porque se um homem é capaz de um conto tão magnífico nessa idade, isso quer dizer que poderemos esperar uma criadora atividade por muitos e muitos anos.

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Em “Tolstói – antiarte e rebeldia”, Boris Schnaiderman ressalta com muita propriedade:

“Realmente, é injusto falar em decréscimo da capacidade criativa de Tolstói por causa da velhice, como se faz muitas vezes. Ele continuava um vulcão, sempre escrevendo, com mil planos fervilhando.

O conto ‘Depois do Baile’ data de 1903, quer dizer, escrito aos setenta e cinco anos, mas é certamente uma das obras mais perfeitas que produziu. Poucas vezes, em literatura, o fato da alienação, do alheamento do homem em relação aos seus semelhantes, que permite suportar com a maior tranquilidade o sofrimento do próximo, vê-lo com indiferença e até participar de atos iníquos, foi descrito com esta mestria. E o indivíduo sensível, que se revolta interiormente contra a injustiça, torna-se um marginal, um ser inferior na sociedade (embora no início do relato se diga que ele era ‘respeitado por todos’)”.

Haveria ainda que falar dos conflitos conjugais de Tolstói, que havia no seu casamento sob repressão interna, em conflito com os imperativos e dilemas dos personagens de seus contos, ensaios e romances. Ainda que de passagem, não posso privar os leitores destas linhas, que copio de Boris Schnaiderman, o fecundo intelectual ucraniano que tanta alegria trouxe à civilização brasileira. São de Boris Schnaiderman:

“Evidentemente, isto (os diários de Tolstói, onde ele expunha sem reservas o que via e sabia da própria mulher) atormentava Sofia Andrêievna. E esta mulher extraordinária vingou-se do marido do modo mais terrível: escreveu também os seus diários, onde contava os detalhes mais íntimos de sua vida com ele, inclusive pormenores de vida sexual, embora ao mesmo tempo tivesse pudores de colegial, chegando a referir-se ao cicio menstrual como ‘as minhas circunstâncias femininas’. Eis uma anotação sua de 1863, portanto um ano após o casamento: ‘Ele é velho e demasiadamente absorto. E eu sinto hoje tão forte a minha mocidade, tenho tanta necessidade de um pouco de loucura! Em vez de dormir, eu gostaria tanto de dar cambalhotas. Mas com quem?’ E ainda no mesmo ano: ‘Eu sou a satisfação, a criada, o móvel com o qual se está acostumado, a mulher.’ Enfim, era uma digna companheira de Tolstói, com extremos de lucidez e oscilação entre a paixão mais ardente e o moralismo mais violento.

A tragédia final teve como desencadeante os malfadados diários. Tolstói anotaria que na noite de 27 para 28 de outubro despertou com a luz intensa que vinha de seu escritório: era Sofia Andrêievna que procurava algo e provavelmente lia (às escondidas os diários do escritor). Revoltado, decidiu abandonar tudo. E realmente, partiu por volta das cinco da manhã, deixando uma carta de despedida para a mulher, onde lamentava o desgosto que lhe estava causando, mas afirmando que não podia proceder de modo diferente”.

Com esse rompimento, Tolstói fugiu do casamento e de Sofia, e rumou para a sua última caminhada, que terminou numa distante estação ferroviária. Ali expirou. Os seus pecados haviam sido perdoados, por força de sua angústia, criação e verdade.

Mas reconheço, ao fim, que escrevi muito aquém do que pretendia escrever. Tudo que rascunhei até este ponto era só pretexto para copiar uma lição fundamental de literatura, que Máximo Gorki gravou para todos nós. Pois lhe disse um dia Tolstói, e Máximo Gorki assim nos transmitiu:

“- Em Moscou, perto da Torre Sukharev, num beco, vi no outono uma mulher embriagada. Estava deitada, bem junto ao passeio. Do pátio de uma casa vinha se escoando um enxurro de água imunda, que escorria mesmo por sua nuca e suas costas. A mulher deitada nesse molho frio resmungava, agitava-se. Seu corpo recaía, agitando na imundície. Ela, porém, não conseguia se levantar.

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Tolstói estremeceu, fechou os olhos, balançou a cabeça e propôs afavelmente:

– Sentemo-nos aqui…. Uma mulher embriagada é a coisa mais horrível e ignóbil que há. Eu quis ajudá-la a se levantar, mas não pude me decidir a isso. Tive um excessivo desgosto: ela estava tão pegajosa, tão molhada; quem a tocasse não teria sido bastante um mês para limpar as mãos. Que horror! E durante esse tempo estava sentado no meio- fio da calçada um rapazinho louro, de olhos pardos, as lágrimas corriam ao longo de suas faces, fungava e repetia numa voz desesperada: “Ma-mãe… então, levante-se”. Ela mexia os braços, dava um grunhido, erguia a cabeça e recaía de novo, flac! com a cabeça na lama.

Calou-se, depois olhando bem em volta de si, repetiu ansiosamente, quase num murmúrio:

– Sim, sim, é horrível! Você tem visto muitas mulheres embriagadas? Muitas, sim, ah, meu Deus! Não descreva isto, não é preciso!

– Por quê?

Olhou-me nos olhos e repetiu sorrindo:

– Por quê?

Depois disse lentamente com um ar pensativo:

– Não sei. Eu disse isso assim… tem-se vergonha de escrever porcarias. E, no entanto, por que não? É preciso escrever sobre tudo…

Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Enxugou-as e, sempre sorrindo, olhou o lenço, enquanto as lágrimas continuavam a correr ao longo de suas faces.

– Eu choro. Sou velho e me aperta o coração quando evoco uma lembrança horrorosa.

E me empurrando ligeiramente com o cotovelo:

‘Você também quando tiver vivido sua vida, ao passo que tudo permanecerá como dantes, você chorará, e ainda mais do que eu, ‘aos baldes’, como dizem as mulheres do povo. Mas é preciso escrever tudo, sobre tudo. De outra forma o rapazinho louro nos quereria mal, nos censuraria. ‘Não é a verdade, não é toda a verdade’, dirá ele. E ele é severo no que se refere à verdade’ ”.

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