“A Festa da Menina Morta”: Falsificação do sagrado
Em obra polêmica, filme de estréia do ator Matheus Nachtergaele expõe as fragilidades das relações entre o sagrado, o misticismo e os marginalizados no alto Amazonas
Publicado 10/07/2009 21:23
Devagar o cinema pernambucano vai criando uma vertente estética em que a epiderme, a emoção desbragada, os baixos instintos ditam as ações dos personagens. E a história mescla religiosidade, sexo e contradições sociais. Desde “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, este tipo de filme vem ocupando um espaço antes dedicado a um cinema mais reflexivo e urbano. O “cinema desbragado”; se podemos chamá-lo assim, é voltado para o interior do país, para as relações de classe explícitas, onde situações extremas dominam a narrativa. Principalmente, “Baixios das Bestas”, onde Assis vai às últimas consequências no tratamento da violência, da exposição de corpos e da humilhação dos mais fracos. No caso, a mulher submetida ao abuso sexual por um grupo de burguesinhos da cidade interiorana. Não é diferente, nesta premiada estréia do ator Matheus Nachtergaele, “A Festa da Menina Morta”, que tem o roteirista Hilton Lacerda como parceiro dramatúrgico. Lacerda é, aliás, figura central neste tipo de obra, pois é autor dos roteiros dos citados filmes.
Em “A Festa da Menina Morta” o tratamento bruto, de cenas cruas, enquadramentos oscilantes, diálogos ríspidos, dado por Assis é substituído por certa sofisticação. Nachtergaele, acostumado ao teatro experimental, engajado, faz com que os personagens tenham certa contenção no comportamento. Quando a emoção aflora está num determinado contexto, que indica suas aflições, suas carências e temeridades. Nada de soltá-los num espaço onde as emoções incontidas afloram sem medir as conseqüências. Há todo um cuidado nos enquadramentos, no mover dos personagens no quadro, nos cenários e nos adereços. Eles têm um papel ali, não estão alheios ao redor e ao ambiente externo. Seus diálogos apontam direções e fazem a narrativa fluir. Nada é tosco, pobre por opção, aqueles seres estão vivendo situações-limites devido ao ambiente miserável em que vivem. Daí a urgência de buscarem os mortos, os pais-de-santo para amenizar suas dores.
Filme deve ao cinema do italiano Pasolini
Um cinema que deve, no limite, aos últimos filmes de Pasolini, notadamente “Pocilga”. As situações espelham as aflições, as imposições sociais, a necessidade de algo que transcenda o momento-histórico em que vivem. Estão sempre à espera que um milagre aconteça; alguém os salve ou lhe indique o que fazer para suportar o sofrimento. Nada ao seu redor indica que sairão daquele torpor, se livrem de crenças que perpetuam sua agonia. Mas eles saem em busca de quem possa ajudá-los. E fazem com que a estrutura que os penaliza perdure. Nachtergaele usa o pai-de-santo Santinho (Daniel Oliveira) para estruturar sua narrativa; pondo em cena personagens contraditórios, como o jovem Tadeu (Juliano Cazarré), espécie de consciência da cidadezinha do extremo Amazonas, a tia e a amiga que cuidam dele, o pai bêbado (Jackson Antunes) e a mulher que perdeu o marido e espera que ele volte (Dirá Paes).
Todos vivem em função do frágil Santinho, criador de mitos, santos e esperança, que faz com que a cidade, os pobres e os poderosos “acreditem” nos poderes milagrosos da chamada “menina morta”. Inclusive o padre (Paulo José) que ajuda a reforçar as crenças e o poder da “santa”, sem qualquer questionamento. Deslocado, ele surge na festa como convidado; alguém que está ali para reverenciar Santinho e se unir ao povo em sua crença de que ambos, ele e a “menina morta”, são capazes de atenuar o sofrimento dos desvalidos e marginalizados. Em meio à lama, ao foguetório, ao sacrifício de animal (porco), ele, o padre de batina negra, tradicional, se curva aos poderes mediúnicos do jovem pai-de-santo. E, para ironia dos fiéis, Santinho está sempre a proteger o galo que traz nas mãos ou o conserva perto, a fim de não vê-lo sacrificado.
Santinho joga com a crença dos devotos
Santinho percebe o poder que tem e o manipula para que as pessoas à sua volta atendam às suas exigências pessoais, religiosas e, até, sexuais. Destemperado, desbocado, intempestivo, ele sabe manter a devoção à “menina morta”, não dando a ninguém a oportunidade de refletir sobre o absurdo de toda aquela encenação em torno de alguém cujo corpo se perdeu no mar. Deste acontecimento tira toda a sua força, estrutura a devoção e a subserviência, administra a benção e faz com que o pobre o veja como “santo”. A exploração da crença popular se torna, certo sentido, o centro do filme. Aquelas pessoas que se aglomeram em torno dele jamais o questionam, nem a si próprio; o aceitam como fato consumado. Tampouco, Tadeu se insurge de verdade, apenas vocifera em instantes de fraqueza. Existe o medo de que, de repente, ele tenha realmente aqueles poderes todos: veja a “menina morta”, receba os santos e seja capaz de fazer milagres.
É, de longe, um dos melhores personagens do cinema brasileiro, como o são o Zé do Burro, de “O Pagador de Promessas”, o Antônio das Mortes, de “Deus e o Diabo da Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, para ficar só em dois. Contraditório, manipulador, ele encarna o universo religioso-popular com todas fraturas e crendices. Seus histéricos gritos são mais de um ser em conflito com sua sexualidade e pelo temor de que suas elaborações e poderes sejam desmentidos. Num desses instantes pergunta à tia se ela acredita que ele seja mesmo santo. E têm momentos de dúvida, quando a mãe ressurge diante dele. Ela, que fazia parte de suas construções, o desmonta, pois lhe mostra os limites de suas manipulações. Esta hesitação se mostra mais forte, quando está diante de centenas de fiéis ansiosos por sua fala, e a voz lhe falta. Talvez a crença seja algo construído em cima de carências, de necessidades de uma voz que acalme quem esteja aflito. Não é algo permanente. Ela é que, se continuada, mantém a urgência do milagre. É o que faz a mulher que vai a Santinho lhe pedir para trazer de volta seu amado. E ele lhe diz que o homem se foi, “está ido”, não volta mais.
Glauber usa o misticismo denunciar mazelas políticas
Este dilema entre a veracidade da crença popular e a manipulação dos falsos profetas recebeu tratamento dialético por Glauber Rocha, em seu filme de estréia “Barravento”. Ali temos a luta entre o líder sindical que acredita no poder da mobilização e do místico que defende suas entidades. Glauber acreditava mais no poder de um cinema mobilizador, revolucionário, terceiromundista. Nachtergaele segue a linha desmistificadora, expondo as contradições, sem apontar caminhos. Quando usa Tadeu para desvendar as mentiras e falsificações de Santinho, ele está bêbado, largado, sem chances de reagir. É mais um palrador, falador, que alguém que possa reunir o povo e lhe dizer francamente o que está acontecendo. Até no momento em que desmistifica as falsas mutações urbanas, via televisão, ele fala ao vento. Talvez Nachtergaele queira dizer que os revolucionários falem hoje para uma platéia que prefere o sonho à transformação. Pessimismo, sem dúvida.
Demonstração disto é a observação de Tadeu sobre a “festa da menina morta” ter grupos de danças coreografadas, saídas da televisão, e de o poder público ter se unido a Santinho para a manutenção da crendice. Os rostos que vemos nas barracas e nas ruas é todo ele moreno, mestiço, enquanto as meninas do grupo de dança se apresentam de peruca loura. Uma lavagem cerebral e tanto conduzida pelos programas televisivos que elegeram o tipo nórdico-europeu como modelo de beleza. Um olhar e tanto de Nachtergaele para este Brasil que se vê cotidianamente na TV, com os olhos anglo-saxônicos. Mas não escapa ao seu modo de se estruturar culturalmente, com o pai-de-santo exercendo o papel central de catalisador das ansiedades e condutor de um rebanho às voltas com as necessidades de manter a esperança, usando as entidades por ele encarnadas.
Estrutura social está agonizando
Um universo perdido nos confins da Amazônia, às margens de rios caudalosos, apesar da devastação inclemente por eles sofrida, da multiplicidade étnica e da sobrevivência conquistada arduamente no cotidiano. Às vezes, esta estrutura social agoniza. O jacaré sendo consumido pelas moscas, o besouro imobilizado pela rede, o porco que resiste ao sacrifício a que é submetido reforçam a simbologia deste universo de um Brasil ignorado. A câmera de Nachtergaele os flagra e os mesclam às incestuosas relações entre redes, táboas e delírio. O consumo do sagrado, a diversão consentida numa festa de fiéis, enfeixa contradições de um povo; diretor e roteirista se unem para descer aos baixos instintos, aos prazeres desmedidos, rompendo a linha que há entre a moral e a transgressão. O “cinema desbragado”, que não conhece limites entre a sutileza e o explícito se funde ao cinema trash de John Walters, de, por exemplo, “Pink Flamingos”, ainda que tente se enquadrar detrás de um falso biombo.
Esta união do trash com a iconoclastia é sua marca mais exposta. Enquanto, Walters buscava desmistificar Hollywood com suas cenas bem comportadas, debochando de tudo. No “cinema desbragado” há apenas o sentido do choque, da transgressão pela transgressão, ou quem sabe, Hilton Lacerda queira refletir as relações entre sombras da baixa classe média ou nem tanto, que transforma as relações familiares num jogo onde as experiências são cada vez mais grupais, sem delimitação entre seus integrantes. A decadente estrutura familiar de “A Festa da Menina Morta” reflete bem esta suposta verdade. Porém, esta é mais exceção que fato corrente. Desde as cenas de abertura o clima na casa/terreiro de Santinho pulsa erotismo, dubiedade, traduzidos na bata-combinação de chita com que ele se cobre. Mais apelo aos baixos instintos, impossível. Não fosse pelo equilíbrio do ator Daniel Oliveira, que sintetiza os místicos conflitos do filme, as situações por ele vividas, causariam maior repulsa.
Obra de Nachtergaele tem objetivo de chocar
Nachtergaele, sabedor do explosivo material que tem nas mãos, tenta e consegue camuflar essa exploração das fragilidades de Santinho. Elas, porém, estão lá, provocando mal-estar, e, decididamente, não é um cinema que traga uma contribuição decisiva estética e dramatúrgica. É mais uma tentativa de chocar, usando o que o que de real existe na estrutura cultural brasileira, do que contribuindo para o surgimento de um cinema nitidamente popular. Sem dúvida agitam festivais e servem de catalisadores de uma tendência de cinema nordestino, se é que – de novo – podemos chamá-los assim. Um cinema agressivo, falsamente desmistificador, que tem outro vértice: o cinema de Lirio Ferreira, de “Árido Movie”, de Karim Aïnouz, de “Céu de Suely”, mais eficaz e que projeta outro olhar sobre o Nordeste do país. Um olhar de transformações sócio-econômicas, em que se permanece o misticismo, ele é um dado que se integra à modernidade da região, não um registro permanente.
De qualquer modo, Nachtergaele mostra sensibilidade suficiente para saber os limites deste tipo de cinema. Equilibra-se nas bordas da emoção, sempre forte em “A Festa da Menina Morta”, notadamente ao tratar das relações incestuosas e das nebulosas construções de uma “entidade”, santificada para preservar as relações entre os fiéis e o poder. Numa época de transição como a atual, de fragilidade das relações familiares, em que os esteios da nacionalidade se debilitam e as referências de identidade se esgarçam trazê-las para a tela exige, no mínimo, saber para onde elas estão indo e, apenas expô-las, acaba sendo insuficiente. Santinho o percebe ao hesitar diante de centenas de pessoas: seu papel surge por inteiro e o barco-oferenda cai no mar e logo é empurrado pelas ondas. Tudo, no entanto, se torna um jogo de espelho quando a degradação se sobressai acima destas próprias construções. O que, sem dúvida, esvazia o tom iconoclasta que o diretor e seu roteirista tentavam, desde o início, desmistificar. A lassidão e o desejo predominam.
““A Festa da Menina Morta”. Drama. Brasil. 2008. 110 minutos. Roteiro: Hilton Lacerda, Matheus Nachtergaele. Direção: Matheus Nachtergaele. Elenco: Daniel Oliveira, Jackson Antunes, Cássia Kiss, Juliano Cazarré, Dirá Paes, Paulo José.
(*) Prêmio de Melhor Filme, no Festival de Chicago
Premiado com 8 Kikitos de Ouro, no Festival de Gramado 2008.
Tem a ver
Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, traz breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que mostram como seus diretores usam o misticismo, a ética e a moral, sob ótica adversa à da obra analisada nesta semana, para discutir os limites das ações humanas.
Barravento – Drama. Brasil. 1962. Direção: Glauber Rocha. Elenco: Antônio Pitanga, Luíza Maranhão. Filme de estréia de Glauber, foi iniciado por Luís Paulino dos Santos, mas traz a linha narrativa que viria depois ser confirmada em obras como “Deus e o Diabo da Terra do Sol” e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, entre outras. Dentre elas, o papel do misticismo na manutenção do poder das elites brasileiras, as fragilidades da crença popular nas relações sociais e a influência da realidade terceiromundista na pobreza da classe trabalhadora. Um filme até hoje poderoso e influente.
Pocilga – Drama. Itália. 1969. Direção: Píer Paolo Pasolini. Elenco: Ugo Tognazzi, Jean-Pierre Léaud, Anne Wiazemsky, Franco Citti. O cinema de Pasolini nunca foi de fácil aceitação. Construiu uma obra em que a contestação ao sistema e a derrubada dos cânones eram o centro da história, normalmente fortes e fora dos padrões cinematográficos de qualquer época. Neste filme, ele discute a antropofagia e os limites ultrapassados pelo homem para atender aos seus instintos. Em duas histórias, uma passada no deserto, e outra no universo burguês, as barreiras entre a ética e a moral acabam e os personagens mostram o quanto o ser humano está próximo dos animais.