A fome é política

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(Foto: Arquivo/Agência Brasil)

A pobreza ao longo do tempo já foi vista como punição ou expiação divina, sinônimo de preguiça ou caso de polícia. É o nobel de economia Amartya Sen que inaugura a perspectiva de pobreza como fenômeno multidimensional, portanto, explicada a partir de diferentes fatores e compreendida em múltiplas dimensões.

Apesar do senso comum usualmente entendê-la como insuficiência de renda monetária, Amartya Sen nos apresenta o conceito de privação de capacidades humanas. Para ele, diz respeito à violação de direitos, é a negação do acesso a recursos necessários ao desenvolvimento humano, como alimentação, saúde, educação, lazer e segurança.

Convencionou-se entre pesquisadores do tema utilizar como instrumento de mensuração a linha de extrema pobreza do Banco Mundial, que em sua última atualização, estabelece que são extremamente pobres aqueles que dispõem de menos de 1,90 dólares per capita por dia, o equivalente, em abril de 2021 a 10,63 reais. Existem, obviamente, críticas e ponderações em relação à utilização deste parâmetro, mas, para efeitos ilustrativos, utilizaremos aqui esta medida.

Ainda de acordo com dados do Banco Mundial, entre 2003 e 2014 a taxa de pobreza extrema no Brasil caiu de 11% para 2,7%, uma redução significativa em um contexto mais amplo de redução da pobreza em diversos países da América Latina. No Brasil, este processo pode ser explicado a partir de duas dimensões, o crescimento econômico e a redistribuição de renda.

O crescimento econômico, impulsionado pelo boom das commodities nos anos 2000, permitiu a implementação de políticas públicas de combate à pobreza. A priorização da pauta nos governos petistas, com a criação de um Ministério de Desenvolvimento Social, deu os rumos para o que seria um caso de sucesso.

A redistribuição de renda se deu principalmente, como o leitor pode imaginar, através do Programa Bolsa Família, que se tornou referência internacional de transferência condicionada de renda. A tecnologia social aprimorada pelo PBF está na articulação e coordenação dos entes federados para o cumprimento das condicionalidades de saúde e educação, e na capilaridade alcançada através da rede bancária e do Cadastro Único.

O PBF foi, de fato, o carro chefe da redução da pobreza no Brasil, mas, sozinho, não explica todo o fenômeno. O Brasil investiu em outras duas frentes de ampliação: do trabalho e da educação. Tivemos a valorização do salário-mínimo, redução do desemprego e a facilitação do acesso aos benefícios de prestação continuada e aposentadoria. Além de investimentos na Educação Básica e expansão do acesso ao Ensino Superior com programas como REUNI e PROUNI.

A partir de 2015 temos o crescimento da extrema pobreza, com o agravamento da crise econômica, política e institucional que tomou de conta do país nos anos seguintes. A insegurança alimentar, por exemplo, voltou a ser uma realidade para milhões de brasileiros. A Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018 do IBGE aponta que no período, 10,3 milhões de pessoas viviam em situação de insegurança alimentar grave e 36,7% dos domicílios conviviam com algum nível de insegurança alimentar.

Com a pandemia da Covid-19 o cenário é desolador. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 mostra que a modalidade grave atingia, no final de 2020, 19,1 milhões de brasileiros, quase 9 milhões a mais que em 2017-2018. E mais da metade da população vive hoje algum nível de insegurança alimentar, 55,2% dos brasileiros são assombrados pela fome.

A previsão do novo auxílio emergencial é de R$ 250 por mês para famílias de duas ou mais pessoas, com a restrição de que apenas uma pessoa pode receber o benefício. Isso significa uma renda mínima de R$ 8,33, portanto, abaixo da linha de extrema pobreza e quanto mais pessoas no domicílio, menor a renda per capita.

Temos expertise suficiente na elaboração e implementação de políticas públicas de combate à pobreza de modo coordenado e eficiente, com capilaridade e um arcabouço institucional já estabelecido. Porém, é necessário haver a escolha de combatê-la.

A pobreza é, antes de tudo, política, porque é resultado das estruturas de desigualdade e marginalização sobre as quais o Brasil foi construído. O retrato da fome em nosso país é uma mulher negra, mãe solo, e esse quadro não se deu por acaso. A fome tem sido um instrumento de dominação, que transforma seres humanos em corpos descartáveis e vidas em função do servir.

Décadas depois ecoam como atuais as palavras da escritora Maria Carolina de Jesus: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças”. Infeliz história de um país que (sobre) vive nos destroços de si mesmo.

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