A geografia da imunização exclui quem está na periferia

É um contrassenso que trabalhadores em funções consideradas essenciais sejam as vidas menos preservadas aos riscos do coronavírus.

Mulheres higienizam o mundo do trabalho que não pode parar l Foto: Portal CTB

A desigualdade social do Brasil fica evidente quando analisamos as informações referentes à vacinação contra a Covid-19. Segundo reportagem publicada na Revista Piauí no último dia 16, a estratégia de imunização adotada nas capitais privilegia bairros centrais e exclui a periferia.

A matéria é baseada em dados do Open Data SUS compilados pelo Pindograma e mostra que as regiões com maior cobertura vacinal são os bairros nobres e centrais, onde os habitantes, por várias razões, têm mais facilidade de acesso à vacina.

A distância dos pontos de vacina não é o único fator que dificulta a imunização de quem mora nos bairros periféricos. Nas regiões mais ricas das cidades estão aqueles que também dispõem de expediente remoto, o que dá mais flexibilidade para cuidar da saúde.

Pessoas com veículo próprio também tiveram o acesso à vacina facilitado nos postos drive-thru, praticado em várias metrópoles pela celeridade que proporciona à imunização. Apesar de mais rápida, a modalidade deixa para trás quem anda a pé já na largada da corrida vacinal.

Quem está à margem na geografia da vacina também está mais exposto ao vírus. É na periferia onde moram os trabalhadores dos serviços essenciais, que não pararam de trabalhar de forma presencial para que a vida das grandes cidades pudesse funcionar durante a pandemia. 

Estamos falando dos caixas de supermercado, atendentes de farmácia, funcionários do transporte público, serviços gerais dos hospitais, técnicos de enfermagem e até mesmo as trabalhadoras domésticas não dispensadas pelos patrões em isolamento social.

Idosos e profissionais de saúde foram os primeiros grupos a terem prioridade de vacinação. Pessoas com comorbidade de saúde, profissionais de segurança pública e professores vieram na sequência, mas as demais categorias superexpostas ao vírus permanecem esquecidas, em meio a um consenso de que a economia não pode parar e não há auxílio financeiro suficiente para manter todos em casa.

Mas é um contrassenso que trabalhadores em funções consideradas essenciais sejam as vidas menos preservadas aos riscos do coronavírus. São esses os mesmos trabalhadores mais explorados e alocados nas bordas das grandes cidades, com precariedade de acesso aos serviços mais básicos. A desigualdade é naturalizada e não causa comoção, mesmo no cenário dramático da pandemia.

Segundo a historiadora e cientista política Françoise Vergès, o trabalho doméstico e os serviços gerais são a base de sustentação da vida nas grandes cidades na lógica capitalista. Funções executadas por mulheres, a maioria negras, que nas primeiras horas do dia higienizam os espaços domésticos, os hospitais, os órgãos públicos e as empresas.

Enquanto nos bairros nobres todos acordam mais tarde, tomam café com calma e aliviam o estresse pela exigência de produtividade com sessões de yoga e exercícios físicos, essas mulheres já limparam todos os espaços para nosso uso.

Nesta pandemia, os corpos estão mais exaustos pela readaptação a novas rotinas de trabalho que ainda respondam de forma eficiente às metas de produção, com buscas pela minimização dos riscos de exposição ao vírus. Mas são os corpos dessas mulheres, que higienizam o mundo do trabalho que não pode parar, os mais afetados.

São também esses os corpos exaustos que retornam ao final do dia para suas casas na periferia das cidades, em transportes públicos lotados de outros corpos ainda não imunizados por vacinas.

São também essas mulheres que, quando não dispensadas da função de limpar as casas nas áreas nobres, as acusadas de terem disseminado o vírus para os patrões, quando estes se descobrem doentes, apesar de terem permanecido em home office.

Uma geografia da vacina que exclui os corpos superexplorados escancara a lógica social da qual já estávamos habituados: as vidas que prestam funções essenciais são as menos preservadas, em qualquer contexto. Sendo assim, o novo normal se parece muito com a normalidade de sempre.

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