A mulher-objeto ou a esposa troféu

Reflexão sobre a persistência de estereótipos femininos e a luta histórica das mulheres por autonomia e reconhecimento

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A BBC News Brasil publicou um artigo sob o título de “ ‘Nasci para ser esposa troféu’: as mulheres que defendem serem sustentadas como forma de valorização”, que tem recebido comentários de leitores, alguns até elogiosos às mulheres-troféus,  acreditem. No texto publicado se veem coisas como    

“O discurso que defende a ideia de que o homem deve ser o grande responsável pelo sustento da família, enquanto a mulher se dedica aos cuidados da casa e dos filhos, deixou de ser o status quo há décadas. Ainda assim, há quem acredite, por motivos religiosos ou ideológicos, que esse é o caminho a ser seguido.

Mas para Byanca e muitas outras mulheres que têm exposto nas redes sociais suas vidas como mulheres sustentadas pelos parceiros — as ‘esposas troféu’, como muitas delas se chamam —, desejar que o homem assuma todas os gastos não significa apoiar o modelo patriarcal de família tradicional.

‘Esse conceito mudou muito. O homem provedor hoje em dia é aquele que te alimenta financeiramente, mas também te exalta, te reconhece e te admira’”.

Um mundo ideal do atraso, podemos ver. No artigo, as que se veem como troféus são jovens, bonitas, de classe média. Observa-se que as entrevistadas, em seu papel de troféu, se julgam privilegiadas pela beleza, graça e situação financeira. É como se fossem misses em ambiente doméstico, onde o mundo conquistado fosse um prêmio às suas coxas, bundas, seios e rostinho de fada que folhe, se vocês bem entendem. Chocante. Mas esses fenômenos de recuo às piores formas de consciência sempre nos impressionam, no pior sentido. É como se o mundo desse uma volta contra o tempo, contra a história. Mais de um século em que o feminismo conquistou com o movimento sufragista o direito ao voto para as mulheres, vemos esse recuo. Se as afortunadas de fortuna de pobres fossem entrevistadas, diriam que sabem muito bem votar e votam em quem desejam, pois sabem entrar sozinhas na cabine de votação. E não querem saber da história daquelas agitadoras. N verdade, para terem a vida que hoje ostentam, elas nem precisam votar. Precisam apenas voltar o próprio corpo     

É amargo dizer que semelhantes troféus em forma de mulher, ou de mulher em forma de troféu, vêm 145 anos depois da magistral peça de Ibsen, Casa de Bonecas. Nela, vemos este diálogo avançadíssimo para os padrões das belas do lar:

“Nora – Você era tão amável comigo! Mas a nossa casa nunca passou de um quarto de brinquedos. Fui sua boneca-esposa, como havia sido boneca-filha na casa do meu pai. E os nossos filhos, por sua vez, têm sido as minhas bonecas. Eu achava engraçado quando você me levantava e brincava comigo, como eles acham engraçado que eu os levante e brinque com eles. Eis o que foi o nosso casamento, Helmer….

Helmer – Você não deve dar atenção a isso.

Nora – Devo tentar educar a mim mesma. E você não é o homem indicado para me ajudar nessa tarefa. É algo que devo empreender sozinha. E para isso eu vou deixá-lo.

Helmer (erguendo-se de um pulo) – O que você está dizendo?

Nora – Preciso estar só, para avaliar a mim mesma e a tudo quanto me rodeia. Por isso não posso continuar a viver com você”.

Notem que em 1879 a casa era de bonecas, mas nas deslumbradas de hoje a casa é de troféus. Em Ibsen, até o título era mais avançado. Troféus são objetos de caça ou de competição. Para os caçadores, as cabeças de feras nas paredes são autênticos troféus. Para as bonecas, não, a caixa e baús e lugares são mais delicados, especiais, carinhosos. Degradam-se até os títulos nas representadas da reportagem. Não são bonecas, são taças de campeonato ou cabeças de leão com a sua juba.

Poderia ainda me referir, de passagem, aos troféus trazidos dos campos de batalhas pelas heroicas guerreiras do Exército Vermelho. Em tanques, em aviões, na infantaria em frentes bárbaras de batalha.

“Eu ia de um general a outro, e assim cheguei ao comandante do front, Rokossóvski. No começo ele recusou … estava louca! Quantos já estavam enterrados em valas comuns, em terras estrangeiras …

Tentei mais uma audiência com ele:

‘Quer que fique de joelhos?’

‘Eu entendo…, Mas ele já está morto…’

‘Não tive filhos com ele. Nossa casa foi reduzida a cinzas. Até as fotografias foram perdidas. Não ficou nada. Se eu o levar para a nossa terra, restará ao menos o túmulo. E vou poder voltar para lá depois da guerra.’

Ele ficou calado. Andava pelo gabinete. Andava.

‘O senhor já amou alguma vez, camarada marechal? Eu não estou enterrando meu marido, estou enterrando meu amor.’

Silêncio.

‘Senão, também quero morrer aqui. Para que vou viver sem ele?’

Ele passou muito tempo calado. Depois, se aproximou e beijou minha mão.

Deram-me um avião especial por uma noite. Entrei no avião … Abracei o caixão… E perdi a consciência.

Efrossínia Grigórevna Breus, capitã, médica”

E termino. Simone de Beauvoir dizia sobre a formação social e histórica do feminino: “Não se nasce mulher. Torna-se mulher”. Ao que podemos parodiar sobre as mulheres nessa reportagem da BBC: Não se nasce estúpida. Torna-se estúpida.  

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