“A Primeira Coisa Bela”: Lição de vida

Mutações sofridas pela família, a “mamma” e a mulher italiana desde os anos 70 são o centro deste drama do diretor italiano Paolo Virzì

A sensação que se tem ao deixar o cinema, após a assistir a “A Última Coisa Bela”, é de que seu diretor Paolo Virzì presta uma homenagem a comédia dramática italiana e a duas instituições emblemáticas de seu país: a ebulitiva família e a protetora mamma. Com a agradável sutileza de mostrar que todos passaram por profundas modificações, a começar por esta última. Ela está na figura de Anna (Micaela Ramazotti, na juventude/Stefania Sandrelli, na velhice), em três etapas de sua vida: juventude, maturidade e terceira idade. E através dela se entrelaçam as demais vertentes tratadas por seu filme.

Paradoxalmente, ela é o vértice do “boa vida” Bruno (Vittório Gassman), de “Aquele que Sabe Viver”. Nada a impede de viver suas paixões, tornar-se cobiçada, sem apegar-se a nenhum de seus pretendentes. O que provoca a ira do companheiro Mário (Sergio Albeli), que a obriga a se virar com os filhos pequenos Bruno (Valerio Mastandrea, adulto) e Valéria (Claudia Pandolfi, adulta). De Bruno, ela tem a disposição, o desapego às convenções, mas também a fragilidade, a inconsequência. Mesmo à custa dos filhos dela dependentes.

Circula pela classe média de Livorno, litoral italiano, atrai a cobiça dos homens da sociedade e provoca ira de Mário, delegado de polícia. Nisso se assemelha às personagens das comédias dramáticas italianas, que fixavam tipos e, porque não, estereótipos da mulher italiana, vistos em inúmeras comédias dos anos 50, 60 e 70. Não à toa, Virzì inicia a narrativa em 1971, na sequência dos ebulitivos anos 60. Anna, no entanto, não é libertária, engajada – é apenas uma mulher comum, cujo comportamento destoa das de seu meio. Ela quer viver segundo seus instintos, desejos e urgências.

Só isto basta para ela ser discriminada pela vizinhança e ser mal vista pelo companheiro Mário. Virzí ao estruturá-la desta forma, quebra a visão da antiga família italiana, fixada pelas citadas comédias. Vivendo de sonhos e acasos, Anna, mesmo na década de 70, está mais para o da família disfuncional de hoje. Mãe e filhos. Só que isto, para ela, é puramente circunstancial. Embora apegada aos filhos, cabe ao pré-adolescente Bruno cuidar da pequena Valéria. Ele representa, entretanto, a consciência, na maioria das vezes, conservadora e machista de certo italiano, por não aceitar o comportamento liberado da mãe.

Filme homenageia Dino Risi

Este é, portanto, o significativo olhar de Virzì para a mulher italiana dos anos 70. Enquadra-se na linha traçada por Dino Risi em seu “Aquele que Sabe Viver”, 1962. Não por acaso homenageado numa das situações vividas por Anna, em seu filme. Risi, Monicelli e Germi são os que melhor sintetizam a comédia dramática dos anos de ouro do cinema italiano. Seus personagens têm um quê de vazio, de tragédia, de deslocamento social, igual à Anna. Bruno (não por acaso homônimo do personagem vivido por Gassman) se tornará, adulto, em seu oposto: professor de italiano, ela se afasta do convívio social, da relação afetiva com a irmã Valéria e dela própria, Anna. Sua vida amorosa é uma incógnita até o impasse entre eles.
Já Valéria é a linearidade, a companheira, a mãe de dois filhos adultos, a trabalhadora num grande escritório de Livorno. Difere de ambos. É a chamada cidadã comum. Quando, eles, enfim se reúnem; três fases de suas vidas se entrelaçam. É o ajuste de contas que permite a Virzì retomar a figura da mamma. Não a mamma das velhas comédias italianas, a entupir os filhos de pasta. Porém, igualmente preocupada com Bruno – a solidão, a falta de companheira, o modo de ele se vestir, o mau-cheiro por ele exalado. E disposta a retornar o bem viver, mesmo diante da adversidade, o centro de seu existir.

Virzì sintetiza, desta forma, as principais vertentes do cinema popular italiano, dando-lhe frescor, atualizando-o sem perder seus principais esteios. Recria situações vividas por Sofia Loren, (“Ontem, Hoje e Amanhã”, Vittorio De Sica, 1963) e Gina Lollobrigida, (“Pão, Amor e Fantasia”, Luigi Comencini, 1953), em seus casos com o conde e o jornalista. O faz utilizando-se de flashbacks, mostrando Anna sedutora, atrapalhada, nem por isto menos esperta. As sequências de ela dançando com o envergonhado filho adulto no parque de diversões, e da filha que, mirando-se em seu exemplo, libera-se de seus entraves – são grandes lições de vida.
Por meio de seus personagens, Virzì e seus coroteiristas Francesco Bruni e Francesco Piccolo dotam o filme de ternura, afeto e paixão. Põem diante do espectador a possibilidade de a arte refletir, em instantes de transição político-ideológica, as relações e as possibilidades humanas. Bruno é o intelectual desiludido, cuja única busca é a da droga. Anna o faz despir-se da couraça que ele criou para si e mostrar-se por inteiro. Ela mesma termina por atestar sua capacidade de surpreender aos filhos e aos que lhes são próximos. E eles logo vão ao encontro de suas escolhas. Afinal, ela sempre teve coragem de ser ela mesma.

“A Primeira Coisa Bela”. (“La Prima Cosa Bella”).
Drama. Itália. 2011. 122 minutos.
Fotografia: Nicola Pecorini.
Roteiro: Francesco Bruni/Francesco Piccolo/Virzì.
Direção/Música: Paolo Virzì.
Elenco: Valerio Mastandrea, Micaela Ramazzotti, Stefania Sandrelli, Claudia Pandolfi, Marco Messen.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor