A sombra de Caravaggio II – Realismo, sua obsessão

Estudando suas primeiras obras, diz Roberto Longhi em seu livro Caravaggio, pode-se notar o que Caravaggio estava procurando. Desde seu início em Roma ele já tinha a ideia fixa em “uma pintura fiel à realidade”.

Isso, numa cidade de pintores clássicos, fazia dele uma espécie de herege. Longhi diz que em Roma “o que se pedia à pintura não era a verdade, e sim ‘devoção’ ou ‘nobreza”, dos temas, das ações”. Mas para o ele a pintura era fruto da “unidade de visão, talvez dura e firme, mas sempre total e penetrante, do jovem Caravaggio diante do objeto”. A pintura deveria espelhar a realidade.

Giovanni Baglione também disse que Caravaggio pintou seus primeiros quadros “retratados no espelho”, provavelmente porque sem dinheiro para pagar modelos, ele se dedicava a “contínuos autorretratos”. Mas outros estudiosos de sua obra discordam dessa informação. O espelho era um recurso usado na pintura para fazer autorretratos, ou para fazer com que o modelo aparecesse bidimensionalmente. Mas essa aplicação era mais rara.

Mas Caravaggio, diz Longhi, olhando em redor, via a realidade como “‘pedaços’ parados de universo, onde não havia lugar para contornos, relevos ou cores como fórmulas de abstração”.
Ele tinha um respeito obstinado pelo verdadeiro, pelo real. Se voltava para a vida como um todo, para os sentimentos simples, para as pessoas simples, para o “aspecto cotidiano dos objetos”. Em seus primeiros temas, Caravaggio pintava basicamente figuras de adolescentes, provavelmente – diz Roberto Longhi – porque, como era pobre, não tinha condições de pagar os modelos que precisasse e recorria aos amigos da mesma idade, como ele filhos de pedreiros, ajudantes de tabernas, “rapazes de rua”, vagabundos.

Por isso suas primeiras pinturas não foram compreendidas por seus contemporâneos. Foi preciso passar 50 anos depois que ele morreu para que se concluísse que ele pintara seus “semelhantes”. E esse tipo de pintura só recebia críticas. Longhi dá o exemplo de um pintor holandês que se fixara em Roma entre 1625-39 chamado Pieter van Laer (1592-1642), que pintava cenas de rua. Segundo um biógrafo da época, Laer “pintou os piores”, “ou seja, aquela pobre gente que é assunto de rua e não de história”. O nível de depreciação era tão grande que, pelo simples fato do pintor ser gordo, foi apelidado de Il Bamboccio, o gorducho que só pintava pobres.

Mas Caravaggio não se rendia às exigências de seus contemporâneos. O tema do cotidiano era sua ideia fixa desde o começo, tipo de pintura que além de tudo era considerada sem decoro. É bom observar que naquela época quase se pintava somente temas impostos por encomenda quase exclusiva de padres ou nobres colecionadores. Quem não se rendesse a essas exigências estava condenado à miséria e ao anonimato.

Entre 1585 e 1595, a teologia dos jesuítas encheu Roma de pinturas de anjos. Todos os artistas eram contratados para pintá-los pelas igrejas e casas eclesiásticas da cidade. Um deles foi o pintor Scipione Pulzone, que ele usava pessoas comuns como modelo para seus anjos de pé. Eram tão belos pictoricamente, diz Giovanni Baglione, “que pareciam respirar vida e movimento”. Mas as pessoas usadas como modelos eram conhecidas de todos, eram cidadãos simples da cidade. O resultado disso foi que os quadros dos anjos foram retirados do local.

Mas Caravaggio, que viu os anjos de Pulzone, não se deixava desviar de seu caminho e insistia em voltar sua pintura para o campo “daquele realismo cotidiano que teve enorme continuidade nos seguidores de todo o mundo”, arremata Roberto Longhi.

Naturezas-mortas

E fez mais uma inovação: inaugurou em Roma a “rubrica, absolutamente nova” para aquela cidade, a “natureza-morta”. Para Caravaggio, segundo um de seus amigos, a dificuldade em pintar a figura humana ou uma natureza-morta era a mesma. Ele tinha, no dizer de Longhi, um olhar permanente para as coisas do mundo, “a realidade contínua na vida dessas coisas paradas e silenciosas sob o crescer e o diminuir da luz e da sombra”, mas que refletem o olhar daquele que criou aquele encanto. Fosse um retrato, fosse uma natureza-morta.
Foi quando ele pintou o “Tocador de Alaúde”, “a mais bela peça que jamais fiz”, segundo teria dito aos amigos e que foi adquirida pelo cardeal Del Monte. Nesse quadro, um jovem rapaz toca seu instrumento ao lado de uma natureza-morta com flores e frutas.


Natureza-morta com cesta de frutas, 1596-98, óleo sobre tela, 31 x 46 cm,
Pinacoteca Ambrosiana, Milão

O que ele queria mostrar com isso? Segundo Longhi, nada mais nada menos dizer que não havia superioridade, na pintura, entre “uma natureza superior glorificada no homem e uma inferior natureza”, coisa que o Renascimento distinguia. Para os padrões de pensamento da época, muito influenciados pela filosofia católica, as pinturas com temas de flores e frutas, jarros e outros apetrechos, não podiam representar uma “apreensão direta da verdade”. Além de tudo, diziam, “pertenciam às cozinhas ou aposentos da criadagem”. Quando se pintava natureza-morta no sentido renascentista, se escolhiam os objetos mais belos, como cristais, copos de Murano e petiscos das mesas dos cardeais. Mas Caravaggio – contra a moda – pintava as cestinhas simples de frutas baratas, com maçãs meio apodrecidas ao lado de outras boas, folhas verdes e também folhas secas e murchas.

E tinha um outro problema em relação às naturezas-mortas, que as diminuíam aos olhos do sistema de pensamento daquela época: elas representavam “temas parados”, quando o que se exigia era a ação nas pinturas de cenas históricas. Esse era mais um ponto de crítica ao trabalho de Caravaggio. Diziam dele que suas pinturas não tinham “ação”. Olhavam para o quadro do rapaz simples descascando uma pera, ou para o músico “tocando de leve as cordas de um alaúde” e o acusavam de serem ações insignificantes, quase inexistentes. Nada a ver com os temas que se esperavam de qualquer grande pintor: os de histórias de ações humanas grandiosas e ilustres, ou os temas religiosos.

Giulio Mancini, outro biógrafo de Caravaggio, escreveu dez anos após a morte do pintor: “Essa escola de Caravaggio é muito observante do verdadeiro, e sempre o tem diante de si quando trabalha; faz bem uma figura sozinha, mas na composição da história, e para apresentar emoção, tomando-a da imaginação e não da observação da coisa para retratar o verdadeiro que sempre tem à sua frente, não me parece que seja válida, sendo impossível colocar num aposento uma multidão de homens que representem a história com aquela luz de uma única janela, e ter alguém que ria ou que chore ou faça o gesto de andar e fique parado para ser copiado, e assim as suas figuras, embora tenham força, carecem de movimento, de emoções e de graça”.

Mas, diz Roberto Longhi, o tipo de movimento que interessava o pintor Caravaggio era aquele que podia ser captado num instante: um rosto de dor, como em vários quadros seus, desde o “Menino mordido por um lagarto” até a “Medusa”. O Cardeal Del Monte foi quem encomendou a cabeça da Medusa, o que ele fez num “velho escudo oriental de torneio”. (Este quadro está exposto no Masp). O tema mitológico não era um tema real para ele, mas mesmo assim Caravaggio o tornou real: pintou o próprio rosto no rosto da Medusa e, diz Longhi, “os cabelos são cobras muito verdadeiras”.

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