A sombra de Caravaggio – parte 4

Quanto mais Caravaggio amadurecia, mais reforçava os escuros dos quadros, diz Longhi.

Ele se via forçado, para viver, a pintar cenas religiosas, com bases em histórias da Bíblia. Mas isso não o impedia de continuar sua resistência, não fugindo à sua ideia fixa de pintar o que era real. Por isso usava figuras comuns, pessoas que ele encontrava pelas ruas de Roma, ou de seus amigos e amigas, miseráveis. Seus fundos escuros eram para ele uma questão de conteúdo, como se quisesse dizer que já que tinha que pintar aqueles temas, ele os inseriria em meio a escuridões “revestindo-se inevitavelmente com o clarão abrupto da luz reveladora entre os rasgos incognoscíveis da sombra.” Ele queria mostrar “a forma das trevas” que interrompem os corpos e todos os personagens inseridos nesse trágico jogo de sombra e luz.
Entre 1592 e 1594 ele pintou mais dois quadros para a mesma capela de San Luigi que tinha recusado o seu São Mateus inicial: “A Vocação de São Mateus” e o “Martírio de São Mateus”. Observando a primeira tela, Longhi diz que parece ser uma cena dentro de uma taberna, com jogadores de azar. Mais uma vez ele se arriscava publicamente num tema religioso. Uma rajada de luz penetra no local através de uma janela no alto. A figura do Cristo, vem da mesma direção, está envolta pela sombra. Apenas a mão dele, que indica a mesa onde está Mateus, se encontra iluminada na parte direita do quadro. A luz, junto com a mão, parece indicar a mesa onde está Mateus, clareando os rostos dos jogadores, que parecem pegos de surpresa. A cena, para uma história religiosa, era mundana. As cores muito vivas. As sombras, densas. A luz, revelava as cores das roupas e os rostos dos jogadores. O rosto do Cristo, na sombra. Agora Caravaggio já sabia que Mateus tinha sido um coletor de impostos.

Já no outro quadro, o “Martírio de São Mateus”, Longhi observa que mais uma vez a dramaticidade do quadro é movida pelo jogo de luz e sombras e acrescenta que Caravaggio “tem a ousadia” de transformar um tema sagrado “num crime de página policial dentro de uma igreja romana da época”. Parece que ele queria provar, observa Longhi, “que o verdadeiro às vezes também nos aparece assim, mas decidisse que, para imergi-lo na realidade natural é preciso ‘macerar-lhe a carne’ e interrompê-lo com as travessas enodoadas da sombra”.
Giulio Mancini escreveu em 1620, sobre o ateliê de Caravaggio: “Um feixe unido de luz que vem do alto sem reflexos, como seria num quarto com as paredes pintadas de preto de maneira que, assim ficando os claros muito claros e as sombras muito escuras, elas venham a dar relevo à pintura, mas de modo não natural, nem feito nem pensado por outro século ou por pintores mais antigos”.

Roberto Longhi observa: “Em Caravaggio é a própria realidade que é atingida pela luz (ou pela sombra) em ‘incidência’”.

Seus anjos, quando os pinta, sempre têm as asas escuras e nunca estão voando. No máximo, pousados sobre uma nuvem densa e bem concreta.

Mas Caravaggio, diziam seus amigos e biógrafos, nunca “elogiava abertamente nem a si próprio”. Estava sempre obcecado em alcançar o real de uma forma que saltasse aos olhos dos que pudessem ver. Quando estive observando seus quadros expostos aqui em São Paulo, no Masp, tive essa certeza: a pintura de Caravaggio fala, e fala muito. Ela diz muito do que ele era, de como ele enxergava o mundo e o seu tempo. Basta ter olhos e ouvidos para “ouvir” sua pintura.

Ao final de sua fase de pinturas para a igreja de San Luigi, Caravaggio se voltou para um tema que parecia ser seu preferido: São João Batista, santo briguento, selvagem, intratável. Que se vestia de pele de cordeiro, comia insetos e esbravejava contra o mundo, profetizando novos tempos. Talvez Caravaggio, ao conhecer sua história, se identificou com ele, para quem usava como modelo um jovem companheiro. Ele pintou vários “São João Batista”. Inclusive este “São João Batista alimentando o Cordeiro” que se encontra no Masp. Longhi conta que, para pintar o cordeiro, esse e outros de seus quadros, Caravaggio alugava algum dos rebanhos que no começo do inverno ainda atravessavam Roma durante a noite. E lembra que Gustave Courbet, no século XIX, alugou um boi e levou-o para dentro de seu ateliê de Paris.

Caravaggio , o inquieto

Com apenas 27 anos de idade, conquistou a fama e o reconhecimento que queria, porque sempre “apresentava todos os sinais de uma precocidade inata excepcional e uma capacidade de crescimento sem fim”. Em 1601, Karel van Mander, amigo íntimo de Dom Arpino, descreve no norte da Europa o que via como uma novidade artística daquele ano:

“Ele tem o defeito de não se dedicar estavelmente ao estúdio; depois de trabalhar quinze dias, fica de folga por um mês. Espada ao lado e um pajem atrás, ele vai de um campo de jogo a outro sempre pronto para brigar e se bater, de modo que não é cômodo acompanhá-lo”.
Uma descrição feita em 1672, por Giovan Pietro Belori, dizia: “ele era de tez sombria e tinha os olhos escuros, negros os cílios e os cabelos, e assim foi também naturalmente na sua pintura”.

“De fantástico humor decerto estranho, descorado no rosto e nos cabelos, bem alto, encaracolado, os olhos vivos, sim, mas encovados”, disse Giulio Cesare Gigli.

Ottavio Leoni, outro artista, cruzou muitas vezes com Caravaggio em Roma e fez dele o retrato conhecido (ao lado).

Ele era um jovem de caráter irritadiço. Um dia jogou alcachofras na cara do atendente luganense da Osteria del Moro que o tratara mal. Lançava improprérios aos guardas às cinco horas da madrugada quando bêbado, saía pelas ruas. Feriu o sargento de Castello e feriu mais forte a cabeça do tabelião Pasqualone.

Um dia recebeu a visita do irmão Battista, a quem não via há muitos anos. Ele era agora padre, homem de letras e bons costumes. Caravaggio não o recebeu bem, diz Longhi: “Quem poderá explicar por que, naquele certo dia, afirmando ser sozinho no mundo, ele negou, cara a cara, reconhecer o irmão padre, “homem de letras e bons costumes” que dizia ter vindo de tão longe para revê-lo?” Battista nunca tinha vindo ver o irmão antes de saber que ele agora era famoso pintor em Roma.

Com sua fama e o reconhecimento público da qualidade de sua obra, as rivalidades cresciam. Mas ele as resolvia a seu modo, com seu temperamento irrefreável. Em 1603 seu futuro biógrafo Baglione (Giovanni Baglione, que está no Masp) abre um processo contra ele, acusando-o de “grosserias e versos obscenos”, mas no fundo invejava a fama de Caravaggio. Baglione era pintor também, mas não chegava aos pés do concorrente. Inventou que Caravaggio e seus amigos tinham posto em circulação versos obscenos. Caravaggio teria respondido ao juiz que não compunha versos nem em língua vulgar, nem em latim, mas “exige que a pintura seja respeitada e não admite que nenhum que não seja valenthuomo se intrometa” no campo da pintura. Também teria dito ao juiz: “Um pintor de valor quer dizer alguém que sabe pintar bem e imitar bem as coisas naturais” e completou: “Os homens de valor são aqueles que entendem de pintura e julgarão bons pintores aqueles que eu julguei bons e maus; mas os que são maus pintores e ignorantes julgarão bons pintores os ignorantes como eles”.

Orazio Gentileschi (que também está na exposição do Masp), que foi testemunha nesse processo e que “também tinha um humor um tanto estranho” declarou sobre o caso Baglione-Caravaggio: “Baglione, andando por Roma, espera que eu lhe tire o barrete e eu espero que ele é que tire o barrete para mim, e também Caravaggio, embora seja amigo, espera que eu o cumprimente”. Ou seja, as rivalidades andavam à flor da pele.

Entre os 20 e os 30 anos de idade, Caravaggio atravessava, “por assim dizer, Roma inteira”. Brincava com seu cão preto, estudava seus quadros, joga pela, frequentava as prostitutas, ia às tabernas onde tinha amigos “de todas as raças e extrações”, se embriagava de vinho e partia para as ruas em gritaria, lançando palavrões para a polícia, se envolvendo em brigas com seus rivais, e jogando pedras na janela da senhoria. Os frequentadores das tabernas também eram os comerciantes de quadros (de Lorenzo Siciliano ao mestre Valentino), estudantes, livreiros, artistas, como o arquiteto Onorio Longhi, amigo íntimo de Caravaggio, assim como Orazio Gentileschi, que mais tarde em Londres deixa a barba pontuda, à la Van Dyck. Nas tabernas também iam os pintores franceses e flamengos que vinham a Roma estudar.

Mas Caravaggio também era visto às vezes dedilhando seu violão “pelas ruelas de Campo Marzio”. Parecia “saber transcrever bem músicas de câmara”. Será por isso que sua tela preferida era o "Tocador de Alaúde?"

Nos últimos dias de Caravaggio em Roma, o cardeal Scipione Borghese, sobrinho do papa, “se apropria de todos os quadros de Caravaggio que encontra pela frente, desde os da época inicial da adolescência até, creio eu, os dos últimos anos meridionais, que surgiram no mercado após a morte do artista”.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor