A sorte está lançada

Ao romper os limites estabelecidos pela lei atravessando com suas legiões o Rubicão, Júlio Cezar lançou a famosa frase: “a sorte está lançada”

Fotomontagem feita com as fotos de: Cristiano Mariz/Agência O Globo e Acento/Photoshelter

Na antiga República Romana, para garantir a estabilidade do Estado, uma lei do Senado determinava que nenhum general poderia entrar em Roma com suas tropas. Ao norte da cidade o limite para a aplicação de tal lei era o córrego à época conhecido pelo nome Rubicão. Júlio Cezar, após a conquista da Gália, em sua disputa com Pompeu pelo Consulado, o mais alto cargo da República eleito pelo Senado, marcha em direção à Roma. Ao romper os limites estabelecidos pela lei atravessando com suas legiões o Rubicão, lançou a famosa frase: “a sorte está lançada”. Pompeu foge de Roma e reúne suas tropas ao sul da península e segue-se uma sequência de batalhas e perseguições até que as tropas de Cézar obtiveram a vitória na Grécia. Derrotado, Pompeu foge para o Egito, onde é assassinado. Vitorioso, Cézar se declara ditador vitalício de Roma, pondo fim à República e inaugurando o período dos imperadores.

Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro tem sido uma ameaça constante à Constituição, à democracia e as instituições. Desde o primeiro dia de mandato, alojou suas tropas às margens do Rubicão. Não só ele, mas também os generais que o acompanharam na campanha eleitoral e vieram a compor o governo acreditaram e ainda acreditam que a vitória eleitoral significou a legitimação de uma reedição da ditadura militar encerrada em 1984. O capitão, afastado de forma desonrosa da tropa na década de 80, investido agora no cargo presidencial, se sente ungido à condição de um general romano que comanda suas próprias legiões. Refere-se à instituição militar como “meu exército” e acredita ter poder para desafiar e derrubar qualquer lei, norma ou instituição que ameace o seu reinado.

Acuado pela perda de popularidade em decorrência do desastre que tem sido seu governo e tendo se transformado em refém do Centrão, vê-se impelido a cada vez mais radicalizar suas ações para manter a base de fanáticos e se garantir no poder. Para tanto, desrespeita acordos, trucida até mesmo aliados, cria inimigos imaginários, ataca instituições e ofende outras autoridades e não tem o menor prurido em praticar crimes e estelionatos políticos. Tenta desesperadamente uma saída para se manter no poder sem ter que se submeter ao voto popular no ano que vem, quando provavelmente será fragorosamente derrotado, elegendo o Supremo Tribunal Eleitoral, seu presidente e ministros, como os inimigos principais.

Com a popularidade em queda livre, lançou-se na cruzada do voto impresso para tentar convencer sua base de que o Judiciário conspira contra ele e que as eleições do ano que vem já estariam com as cartas marcadas por meio de fraudes que seriam promovidas pelo Supremo Tribunal Eleitoral. Em momento algum Bolsonaro pretendeu mudar o sistema eleitoral e provavelmente até mesmo desejava que a PEC apresentada pela deputada Bia Kicis não passasse da Comissão de Constituição e Justiça. O fundamental era manter o clima de confronto e a narrativa de que conspiravam contra ele.

Manifestante pedindo voto impresso em Brasília I Foto: Cláudio Marques/Futura Press/Estadão Conteúdo

Para ganhar tempo e esfriar os ânimos, Arthur Lira tentou a manobra de levar a PEC para votação em plenária, mesmo ela tendo sido rejeitada na CCJ. Fez um acordo com Bolsonaro, que assumiu o compromisso de que o resultado seria acatado. Acreditou na palavra do genocida. Bolsonaro sabia que seria derrotado, mas nunca pensou em aceitar tal derrota. Fez questão, no entanto, de arregimentar o máximo de votos para transparecer à sua base que apesar de ter conseguido uma maioria, a minoria estava avalizando a fraude que o TSE iria promover na eleição futura. Para incitar ainda mais sua horda de fanáticos, promoveu um desfile de sucatas na esplanada no dia da votação.

Como era esperado, o acordo feito com Lira não foi cumprido. No dia seguinte à votação, manteve a verborreia contra o voto eletrônico e elevou os ataques aos ministros Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Mandou o acordo com Lira para a Cochinchina e ainda por cima passou a insinuar que aqueles que votaram contra a PEC, fizeram-no porque se beneficiam de possíveis fraudes do voto eletrônico. A estratégia de Lira de ganhar tempo e tentar costurar uma saída para a crise institucional foi para as cucuias. Bolsonaro não cumpriu esse e não cumprirá nenhum outro acordo.

Não bastasse o deprimente desfile de sucatas promovido pelos comandos militares que ridicularizaram o Brasil perante o mundo, saem em público Braga Netto, Heleno e Ramos para arrotar ameaças autoritárias. Braga Netto já havia tido o rompante de mandar recado ao presidente da Câmara de que não haveria eleições caso o voto fosse eletrônico e, após a votação da PEC, ele e seus dois colegas de pijama passaram a fazer ameaças de que o artigo 142 da Constituição pode ser invocado promovendo intervenção militar caso o Supremo mantenha o que eles consideram como tensionamento contra Bolsonaro.

Em paralelo a estes acontecimentos, o próprio Bolsonaro e seu gabinete do ódio passaram a convocar manifestações de apoio a ele e contra o Supremo em Brasília e São Paulo no 7 de Setembro. Trouxe a Brasília figuras decadentes como Sergio Reis e Eduardo Araújo e os convenceu a tomarem a frente das convocações, chamando caminhoneiros e fazendeiros para ocupar Brasília nestas manifestações e depor o Supremo. Obviamente a convocação e a motivação para fechar o STF não saiu da cabeça desses dois, pois essas só servem para usar chapéu. A convocação e os objetivos foram arquitetados no gabinete presidencial.

Foto: Reprodução

Pacheco, Lira e Ciro Nogueira tentaram mais uma vez apagar a fogueira e procuraram Fux na expectativa de reagendar a reunião entre os chefes dos três Poderes que havia sido suspensa pelo presidente do Supremo. Não se sabe os meandros da conversa, mas se pretendiam uma sinalização de Fux, ela foi dada no dia seguinte, quando ele se pronunciou afirmando que não interrompeu o diálogo com os demais poderes, mas o reagendamento da reunião que havia sido programada e suspensa teria que ser reavaliada. Coerente a posição do chefe do Judiciário, pois primeiro o trio centrista teria que convencer Bolsonaro a recuar, algo que não conseguiram, pois nenhuma reunião seria possível sob a ameaça posta no ar com a manutenção da manifestação do dia 7.

Entendendo a gravidade da situação, coisa que Pacheco e Lira parece que não conseguiram, Alexandre de Moraes determinou a prisão de Sergio Reis, de Eduardo Araújo e do deputado Otoni de Paula, porta-vozes de Bolsonaro na convocação da manifestação. O recado era claro, com ameaças de coação não haveria diálogo. Demonstrando que em momento algum pretendia sentar e negociar uma estabilidade, Bolsonaro dobrou a aposta e encaminhou ao Senado pedido de impeachment de Alexandre de Moraes. Ele tem absoluta certeza de que tal pedido sequer será aceito, mas serve como mais um elemento para inflar o dia 7 e tensionar seu gado contra o Supremo e o Congresso. E o pior é que, com cara de tacho, Pacheco veio a público com a balela de buscar o diálogo.

Bolsonaro não está criando uma narrativa para questionar uma possível derrota eleitoral em 2022, pois a única eleição que ele aceitará é aquela em que haja absoluta garantia que somente ele será o vencedor. Trabalha insanamente para impedir que ocorram as eleições. Para quem ainda não entendeu, Bolsonaro atravessou o Rubicão e pretende reunir suas legiões no 7 de Setembro para sair ao encalço de seus Pompeus. Se alguém acredita que a maioria silenciosa das Forças Armadas está contra um possível golpe, o silêncio não diz nada e é cumplice. O desfile de sucatas na esplanada demonstra que uma parcela dos militares apoia e, se não houver reação imediata, basta um cabo e um soldado armados para fechar o STF. A sorte está lançada e se não houver uma forte mobilização das forças políticas e democráticas nesta semana para fazer frente a esta manifestação bolsonarista, a situação poderá sair definitivamente do controle, pois o alucinado do Planalto pretende ir às últimas consequências.

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