Adeus Godard, adeus cinema

Jean-Luc Godard não fazia filmes sobre o cinema, mas sobre semiótica, linguagem, psicanálise, dentro de suas influências humanistas, existencialistas e marxistas

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Em 2015 tive uma oportunidade incrível de assistir diversos filmes de Jean-Luc Godard no cine Humberto Mauro em BH, mostra que me serviu de constatação de que se trata de meu diretor preferido.

Minha maior imersão sobre a obra do cineasta que fez a minha cabeça desde que era adolescente e frequentava a locadora Vídeo 1 (primeira do Brasil) do meu primo Luis Renato Ribas nos anos 80 em Curitiba.

Nunca mais fui o mesmo depois que entendi que o cinema não se limitava aos filmões americanos. Existia algo mais sensual ou reflexivo no cinema Europeu que não passava despercebido, EUA fazia filmes para pessoas com idade mental inferior aos 12 anos (hoje faz para adultos com maturidade de 8 anos), e os filmes europeus eram para adultos. Somente se sentir adulto aos 15 anos de idade era algo bem excitante para um adolescente.

Assistir filmes europeus me ajudou (ou não) em minha formação intelectual, tanto quanto nas paqueras, na vida sentimental, sexual, e claro nas DRs. Nada melhor do que cinema europeu para lhe dar várias e novas problemáticas para discutir suas relações afetivas.

Acossado deve ter sido a minha primeira experiência lá pelo meio dos anos 80. Me causou um impacto imediato devido ao personagem fanfarrão, rebelde e fora da lei vivido por Jean-Paul Belmondo ao qual por óbvio me identificava. E também pela personagem de Jean Seberg, jovem, linda, moderna, dúbia, sexy e insensível, um padrão de mulher que fugi com todas as forças de forma ineficaz por quase toda a minha vida.

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Claro que depois veio não necessariamente nesta ordem, Viver a vida (1962), O Desprezo (1963), Bande à part (1964), Alphaville (1965) e Je vous salue, Marie (1985) que era tabu, proibido e até por isso, todos queriam assistir. Filmes que eram influência entre debatedores juvenis nas mostras de cinema das salas de artes do século passado, e que muitos no Brasil só puderam assistir após o fim da ditadura devido à censura. Depois mais maduro conheci meus preferidos La Chinoise (1967) e Adeus a Linguagem (2014).

Um cineasta que tinha algo para dizer, não somente sobre o cinema (Passion, 1982), mas sobre ideias, teorias e sobre o espírito intelectual do tempo em que viveu. Seus filmes tratavam sobre liberdade, sexualidade, modernidade, distopia, inconsciente, existencialismo, política, religião, socialismo, capitalismo, estética, linguagem, cinema e tudo mais que foi relevante para ele e seus amigos na medida que amadureciam intelectualmente ao longo da vida.

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Diferentemente do que cinéfilos acham, Jean-Luc Godard não fazia filmes sobre o cinema, mas sobre semiótica, linguagem, psicanálise, dentro de suas influências humanistas, existencialistas e marxistas. Ele era o pensador Francês que fez do cinema o que discutia nas relações com seus contemporâneos e amigos, que estavam entre os maiores filósofos, psicanalistas, semioticistas, sociólogos Franceses de seu tempo.

Godard tinha domínio sobre o que discutia, de tal forma, que todos que não leram minimamente os autores que eram seus amigos, ainda não entendeu sobre do que se trata a obra deste pensador que se manifestava por meio do cinema.

Ele teve controle mais de sua obra e sua vida, do que teve de seu entorno, tão conturbado, como a vida de qualquer outro grande gênio.

A necessidade deste controle, pode ser manifesta em Adeus a Linguagem (2014) sua obra prima, que só deve ser assistida em versão 3D após 7 anos de analise lacaniana e leitura das obras primas de seus principais contemporâneos franceses. Neste filme, ele apresenta de forma residual (restos), e através de exercícios conceituais visuais que atravessam o enredo, paisagens e personagens, diversas das teses que marcaram os diálogos intelectuais entre ele e seus amigos. É quase um manual de problemáticas da intelectualidade francesa expressa em filme, sem em momento algum assim se apresentar.

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O cinema como ele conheceu e pode exercitar morreu junto com as grandes salas de cinema, e foi enterrado graças aos serviços de streaming, que fazem filmes com base em pesquisa de opinião e algoritmos, paralelo com o pesadelo distópico da sociedade perfeita que o diretor apresentou em Alphaville (1965).

Ele como outros grandes cineastas andavam declarando isso de uma forma ou de outra, de que se tratava do fim de um tempo e fim do cinema como um dia foi, uma experiência de descoberta e de expressão de ideias através da arte e da técnica, da qual a subjetividade era fundamental.

Godard viveu para expressar ideias no cinema. Seu suicídio assistido em 13 de setembro de 2022 aos 91 anos é emblemático, e representa o controle sobre a vida, a morte e sua própria obra, dando um fim por escolha, tal qual o entendimento que tinha sobre “pulsão de morte”, de “corte do desejo”, do “ao menos um”, e de outras teses com origem na psicanálise.

Godard disse ao deixar o plano, que ama a vida e o cinema, por isso disse Adeus! Deu seu último corte abrupto como em seus primeiros filmes da nouvelle vague, sem explicações, como no fim de um seção de psicanálise. Vã para casa pensar depois deste corte.

Fez isso, ninguém sabe a razão, mas dá para supor que um homem com a sua maturidade intelectual, deve ter chego a conclusão de que, se já não é mais possível ter prazer (com o mundo, com o cinema), que se exercite o direito de se retirar de cena, deixando rastros do invisível no plano, e no contra plano interrogações, como em sua própria obra.

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