Algumas histórias de trabalhadores
Relatos de um motorista doente, sem aposentadoria e lutando para sobreviver escancaram o abandono de quem move o país com o corpo e paga caro em cada passo.
Publicado 06/06/2025 12:59 | Editado 06/06/2025 13:56

Pegando um UBER para o hospital, para uma cirurgia de catarata, o motorista do carro ia falando. Ele era um verdadeiro engenheiro de trânsito, urbanista, orientador, mestre de como deviam ser viadutos, pedestres, crianças, todos veículos, tudo enfim que dizia respeito ao trânsito no mundo.
A determinada altura, olhei bem para ele ao meu lado, e vi que era um cidadão mulato como eu sou, de cabelos grisalhos como estou. Então lhe perguntei:
– O senhor trabalha neste carro quantas horas?
E ele:
– De cinco da manhã às 5 da tarde. Não trabalho mais porque fica perigoso.
E voltei:
– O senhor está aposentado?
E ele:
– Não. Minha aposentadoria está na justiça há mais de ano. .
Então começou de verdade a nossa conversa, porque ele continuou:
– Eu estou com 4 parafusos aqui na coluna. Fui operado na Restauração. Depois de 13 horas de jejum, quando ia ser operado, chegou um assaltante que tinha sido baleado pela polícia. Aí eu tive que esperar mais uma hora de fome.
Nesta altura, pensei: “E eu aqui reclamando porque estou somente há 10 horas de jejum. Mira-te neste homem”.
E perguntei:
– Por que não lhe dão a aposentadoria?
E o motorista:
– A perícia do INSS negou. Eu disse ao médico: “Doutor, eu não estou aqui poque não gosto de trabalhar não. Eu gosto de trabalhar. Mas não posso mais pegar peso, me abaixar, andar direito, porque minha coluna travou”.
E o senhor motorista esclareceu:
– Eu era pintor de carros na Italiana. Era o dia todo e mais, pra ganhar hora extra. Um dia, quando me abaixei, ouvi um estralo com uma dor desgraçada. Travei. Não conseguia mais me levantar do chão. Quando eu contei ao médico, sabe o que disse o doutor? “Você pode trabalhar. Pode ser muita coisa: pode ser porteiro …”.
Então observei ao senhor no carro:
– Esses peritos agem assim. Eu já tive um vizinho que era motorista de ônibus. Com problema sério no coração. Procurou a perícia, e nada. O perito dizia que ele estava bem, pois aquilo era só um mal-estar. Um dia, no volante, o meu vizinho desmaiou e o ônibus bateu. Foi demitido, porque estava vivo! A situação com a perícia é sempre assim: o trabalhador só é reconhecido como inválido quando está em cima da morte. E olhe lá…
E o cidadão:
– É o meu caso. Tenho dor até hoje., Vivo no remédio. Olhe aqui. (E puxou um saco plástico, na sua porta, e saiu dizendo os nomes de remédios analgésicos e antibióticos). Eu fico com o ar-condicionado ligado, porque no calor a dor aumenta. Mas pra não passar necessidade, aluguei este carro.
Como sempre acontece, diante de situações graves, sérias, para as quais não temos uma resposta digna, fiquei sem palavras. Tentei mudar de assunto. E achei, ou pensei ter achado: passávamos à frente do Hospital da Restauração, e me lembrei do caso do motorista do SUS, que teve a ambulância roubada.
E o cidadão ao meu lado respondeu:
– Esse motorista mora 3 casas depois da minha. Ele é terceirizado do SUS. Ganha 1.600 por mês. Sabe o que aconteceu? Ele é orientado pra quando leva um paciente na maca, deixar o carro ligado. Então um homem lá no posto de saúde teve um surto. Correu, entrou na ambulância e saiu dirigindo. Como não sabia nem passar marcha, bateu com ambulância. Veio a polícia e prendeu o doido. Sabe o que ele disse à polícia? Que não era ladrão, apenas não aguentava mais esperar no posto de saúde. Aí ele pegou a ambulância pra chegar ligeiro no Hospital da Restauração. E bateu!
Eu comecei a rir, era tragicômico. Mas o cidadão grisalho voltou:
– O senhor sabe o que aconteceu? O meu vizinho seguiu as orientações quando deixou a ambulância ligada pra outro atendimento. Depois de roubada, a ambulância quebrou. Agora, a empresa quer que o meu vizinho pague o prejuízo. Mas ele só ganha mil e seiscentos contos por mês. Pode? Ele teve culpa?
Lembrei então, de mim para mim, de outros prejuízos em que um trabalhador paga o dano que ele não causou. Chegamos ao hospital para a minha catarata. Desci com um nó fechado na garganta. O motorista se despediu:
– Desculpe qualquer coisa, é que eu gosto de falar muito.
E lhe respondi:
– Nada. A viagem ficou mais curta. Muito obrigado.
Saí para a minha cirurgia. Eu compreendia o motorista muito bem. Como é difícil a vida do povo! Trabalha doente, com dores, à beira da morte, sem direitos praticados a seu favor. E aguentando como o diabo deseja até o fim.