Amplitude na transição: correta, mas arriscosa

Há que distinguir, nesse processo de construção coletiva, o “glacê” e o “bolo”

Ainda sob o impacto da morte inesperada de Gal Costa — que marcou a minha geração desde antes até agora —, reflito sobre os riscos inevitáveis da existência.

“Viver é arriscoso”, proclama o personagem de Guimarães Rosa.

O risco é inerente à vida, sim. Está em toda parte, camuflado ou visível.

Como agora na transição para o novo governo Lula.

Da parte do presidente eleito, tudo parece acontecer conforme o melhor figurino, sobretudo pela visível reafirmação da frente ampla que logrou derrotar o fascismo.

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Corretíssimo. Qualquer laivo de estreiteza ou hegemonismo (que poderia se expressar no principal partido da coalizão, o PT) seria extremamente danoso.

Então, o competente maestro Lula compõe a orquestra da transição contemplando todas as correntes políticas e segmentos sociais diversos, representando interesses tanto convergentes quanto contraditórios.

São muitos núcleos temáticos e um conselho político constituído por representantes dos 11 partidos da frente ampla vencedora, agora acrescidos do MDB e do PSD.

Cada núcleo temático, concomitantemente com a análise dos dados a receber do governo findo, promoverá a ausculta dos mais diversos setores interessados.

Porém há que distinguir, nesse processo de construção coletiva, o “glacê” e o “bolo”.

Em pouco mais de 40 dias, seja por alternativa técnica e jurídica, seja pela construção de maioria parlamentar imediata, ainda que temporária, há que se resolverem questões urgentes não apenas relevantes porque configuram promessas do presidente eleito, mas por que têm a ver com enorme passivo econômico e social herdado.

Aí reside o bolo. E o perigo.

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Pois destravar o Orçamento existente implica, provavelmente, numa PEC assim chamada “da transição”.

Além da gravidade desse instrumento, porque mexe com a Constituição, num ambiente parlamentar ainda adverso o novo governo poderá amargar, no texto da emenda constitucional, a inclusão de jabutis (artigos que não dizem respeito à essência da PEC, mas podem contemplar certos interesses escusos).

Por aí se vê que no âmbito da grande equipe de transição se distinguem uma turma debruçada exatamente sobre questões cruciais do início do governo — de ordem fiscal e monetária, grandes contratos, etc. (o bolo) e uma turma dedicada ao debate acerca de políticas públicas e diversas outras questões (o glacê).

A acolhida de proposições advindas dos mais diversos segmentos sociais que dialoguem com os grupos temáticos será importante, mas seu conteúdo, uma vez sistematizado, apenas servirá de subsídio aos futuros ministros.

Entrementes, a grande mídia monopolizada pressiona pela escolha antecipada do ministro da Fazenda. São os interesses do rentismo postos à mostra.

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