Antes que me matem

Ando dormindo muito, tentando esquecer os monstros que me rodeiam, não sei como será amanhã, antes que seja tarde, reafirmo: o amor precisa ser declarado

Ilustração: Hanna Barczyk

Antes que seja tarde, o amor precisa ser declarado. A qualquer momento posso morrer ou o desejo de viver pode se enclausurar entre quatro paredes. Já plantei várias árvores, escrevi alguns livros, casei, nada disso foi o suficiente, ainda quero ter tempo para plantar árvores, escrever livros e ensinar a subir nas cadeiras, casar é mais complicado. Peço, a não sei quem, que não me tire o direito de sonhar, afinal ainda tem um mundo para ser transformado e isso exige: gente e esperança. Ainda sou jovem, meus registros dizem o contrário, as vozes das palavras de ordem da juventude me fazem chorar e crer nos girassóis, comecei quase menino empunhando bandeiras bordadas de sonhos e resistência.

Nunca foi fácil empunhar bandeiras de sonhos e resistência num mundo em que a ordem é erguer o silêncio e a mentira, mesmo assim nunca desisti de ser comunista, como a gente diz isso é uma opção cotidiana. Mas não existe uma métrica para nos medir. O mundo é complexo, inexato e não cabe nos dividir entre o bem e o mal, talvez a analogia do yin yang seja mais próxima para simbolicamente definir a dialética dos seres humanos. Os humanos não nascem prontos, nem com defeitos, nascem. A vida histórica e social é que se encarrega de alterar a humanidade.

Antes que seja tarde precisamos declarar o amor. Inclusive sabendo que é impossível colocá-lo na bandeja do bem e do mal, ele pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, menos ser adquirido na nascença, na farmácia ou no mais vendável livro de sucesso.

O amor pode se esconder nos gritos do pai e no silêncio da mãe. Idealizamos o amor dentro de uma receita ou como uma literatura em que as linhas já têm suas histórias definidas.

Sonhar é importante para viver. Tenho medo dos meus sonhos serem esquartejados na esquina do Jornal Nacional.

Tenho uma trindade que amo e para além dela não nego o amor. Alguns nascem aprendendo a gostar do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eu também aprendi. Mas a minha trindade é meu pai, minha mãe e meu filho.

Meu pai é desses que não sabem dizer eu te amo, minha mãe também segue o mesmo caminho, um é sapateiro e inventor e a outra é costureira, as maiores demonstrações de amor tenho. Minha mãe foi a primeira pessoa que me ensinou, do jeito dela, o que era comunista: “comunista é esse povo que defende a igualdade”. Meu pai sempre teve medo de ter um filho comunista, isso com medo de perder. Porque muitos comunistas nunca voltaram para casa.

Meu pai tem só uma perna, perdeu a outra aos 12 anos, quando era adolescente ele me levou para o hospital nos braços. Minha mãe comprava revistas e livros de artes marciais escondido, já que a renda familiar era insuficiente e a leitura era  luxo. Minha mãe contava histórias nas noites que faltava energia. Meu pai fabricava brinquedos para me dar de presente.

Lembro dos cuidados de ambos, nunca conseguiram dizer eu te amo, mas entendi depois de décadas que, mesmo faltando eu te amo, estava ali nos gestos a demonstração querendo dizer eu te quero bem.

Quando meu filho nasceu, eu tinha 24 anos. Os primeiros dias foram difíceis, tinha medo de segurar nos braços e deixá-lo cair, dar banho era outro receio. Antes de ter filho achava que nunca saberia cuidar e na verdade nunca sabemos, porque o amor é cheio de zigue-zague. Ele recebeu nome de revolucionário, nem sei se ele gostou do nome dado. Tentei e tento estar muito próximo e reafirmar o “eu te amo” que me faltava, mas não sei se é o suficiente.

Sou confidente do meu filho, deixo evidente meus compromissos e o meu desejo de viver, falo dos desafios e nunca esqueço dos bolos com cobertura cor de rosa nos dias de seu aniversário. Não sei se sou o pai que ele pediu a Deus, mas sou o que ele tem. Ele tem sido minha bússola e a minha insistência em viver.

Mãe, pai e filho têm formas de demonstrar amor que não estão inscritas em nenhum livro sagrado. Eu amo, mas minha trindade é muito pequena diante da humanidade, sigo amando.

Mas os amores não estão na palma da mão, como as linhas. Costurar os caminhos é sempre procurar agulhas e nem sempre as encontramos.

Não sou a linha reta do caminho. Quem é? Se no caminho tinha pedras, elas continuaram existindo de alguma forma porque a vida não é retilínea. A minha indignação é amor, quando vejo cachorro e humano dividindo a mesma cama da rua, a criança estendendo a mão para alimentar os seus pés descalços e a jovem levando tapas e chutes do bandido fardado por lutar pela revolução.

Hoje me falta bolo de cenoura com cobertura de chocolate e mesmo assim o amor continua. Talvez outros cabelos cacheados façam florescer cuidados. Nada é eterno, mas tudo se transforma, esse é um princípio mais racional.

Viver é difícil, já dizia o poeta russo.

Ando dormindo muito, tentando esquecer os monstros que me rodeiam, não sei como será amanhã, antes que seja tarde, reafirmo: o amor precisa ser declarado.

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