“Árido Movie” : Nordeste para turista

Diretor pernambucano Lírio Ferreira tenta mudar o enfoque dos filmes sobre o nordeste, a partir da história de um repórter, radicado no sul, que é obrigado a vingar a morte do pai.

O nordeste, com seus cangaceiros, beatos, retirantes, seca,  coronéis, sempre foi um tema caro à cinematografia brasileira. Muitas reputações foram construídas com filmes que o tiveram como cenário. Principalmente de cineastas que souberam usar seus tipos fortes, mitos e, principalmente, as contradições sociais e de classe que, em certa medida, ainda perduram. Filmes como “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, e “Deus e o Diabo da Terra do Sol”, de Glauber Rocha, retrataram para o brasileiro uma realidade não tão distante de seu cotidiano. Mesmo jovens cineastas, a exemplo de Marcelo Gomes, em “Cinema, Urubus e Aspirinas”, não deixaram de retornar ao tema, com uma obra que mostra a aspereza de uma região relegada ao atraso. Como se a superar uma fase estética e dramatúrgica do cinema nacional, o pernambucano Lírio Ferreira (“Baile Perfumado”) decide, com “Árido Movie”, traçar um perfil da região sob uma perspectiva moderna. Usa para isto, o sertão de Pernambuco, região de Catimbau, com seus canyons secos, montanhas carcomidas pela corrosão milenar.
            
Em seu filme, o agreste permanece, mas é dotado de uma beleza cuja aridez exerce um fascínio inebriante sobre o espectador. Desapareceram as procissões, os retirantes, os cangaceiros, a miséria endêmica e aquele fervor religioso que caracterizava, nos filmes, o atraso do Nordeste. Os cangaceiros, no entanto, não desapareceram – se metamorfosearam em pistoleiros, que trocaram o lombo do jegue pelo macio assento de uma potente moto; os coronéis permanecem em sua sanha por vingança e por fortunas consignadas em rebanhos de bodes e, agora, pequenos hotéis, e os retirantes desapareceram como se por encanto. Até mesmo o beato, personagem emblemático daquelas obras, se transformou num guru, com amplas barbas e um cinismo bem ao gosto deste início de terceiro milênio. Um guru que não tem seguidores, só uma mística concentrada em sua figura e em sua fala cheia de símbolos e viagens holísticas.

            
Mudança de enfoque representa um avanço

           
No pequeno lugarejo onde ele se refugia não há beatas com velas e rezas, só o silêncio, o vazio, a ausência de qualquer traço de que se trata de um profeta com seguidores. O próprio lugarejo onde refugiou assemelha-se a uma cidade pintada para receber turistas, com suas casas, meio-fios e calçadas brancas. Uma transformação e tanto para uma região povoada de contradições sociais, seitas, miséria, mortalidade infantil, prostituição e exploração dos trabalhadores. O sertão nordestino de “Árido Movie”,é o agreste para turistas, com pontes limpas, estradas bem cuidadas, postos de gasolina de pronto-atendimento e comida variada. E, para não deixar dúvidas, paisagem deslumbrante. Nenhum traço restou do antigo Nordeste, tampouco a história deixa qualquer traço com a dramaturgia que povoou as telas na época do Cinema Novo, ou antes, com “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, premiado em Cannes.
            
Só esta mudança de enfoque já representa um salto e tanto, para a cinematografia brasileira atual. Deixar para trás uma etapa e iniciar outra é de uma coragem elogiável. Realmente aquele nordeste desapareceu, com a industrialização de vastas regiões de Pernambuco, Ceará e Alagoas. As cidades evoluíram, o antigo retirante, que virou migrante, já não pensa em vir para São Paulo, prefere permanecer em sua região natal. É preciso traçar uma radiografia dramatúrgica do nordeste atual, com suas mutações. Este, no entanto, não é o centro de “Árido Movie”, que aranha as antigas contradições, a partir das lamentações do índio Seu Zé(José Dumont), que perdeu suas terras ainda no tempos das capitanias hereditárias e foi obrigado a se aculturar. Administra o posto de gasolina, a oficina mecânica e o bar da cidade, não sendo propriamente um deserdado, já que tem um patrimônio a administrar.

              
Índio Seu Zé é o personagem mais lúcido do filme

              
Seu Zé, entretanto, não quer transformar a estrutura social da cidade, apenas lamenta que, antes, era dono de todas as terras, agora nem perspectiva tem de reaver parte delas. Sua ambição é de acumular, não se dividir. É um personagem simpático mais devido à empatia do genial José Dumont, do que pelo seu perfil. A mudança de enfoque mais interessante de “Árido Movie”, na desmontagem (não desestruturação ou desconstrução) do tema nordeste se dá na “genealogia da vingança”, em que o filho vinga a morte do pai e, assim, sucessivamente, numa matança que se transfere de geração para geração. O filho, Jonas (Guilherme Weber), deve cumprir o círculo de matança em sua cidade natal, Rocha, no sertão pernambucano para vingar a morte do pai (Paulo César Pereio). Só que ele, famoso repórter do tempo numa emissora de TV em São Paulo, perdeu qualquer ligação com a cultura nativa, nenhum referencial que o faça se imbuir de um ódio construído a partir de rixas seculares.
               
A mutação que se devia esperar é uma desconstrução a que Lirio Ferreira brinda o espectador, desacostumado a este tipo de narrativa. Ou seja, o personagem bonzinho deve, pelas regras hollywoodianas, vide Michael Corleone, em “O Poderoso Chefão”, se transformar num assassino brutal, para fazer valer a escrita da família. Aí reside uma das fraquezas do filme. Lírio e seu roteirista Hilton Lacerda não construíram o personagem e a história de forma que o desfecho fosse sentido pelo público como uma rejeição a uma tradição familiar. O impacto do comportamento de Jonas se dilui entre outras histórias e personagens que povoam “Árido Movie”. O próprio Guilherme Weber não cria empatia suficiente com o público para contribuir com a rejeição a uma imposição da avó. É por demais apático, sem carisma, mesmo para um homem do tempo que é obrigado a convencer o telespectador de que sua previsão é crível.

                 
Projeções do místico Meu Velho não chegam às massas

                
Seu contraponto na história é Seu Zé, com o qual trava os diálogos mais interessantes do filme. Mas isto é insuficiente para emocionar e Jonas se tornar um aliado do índio. Talvez esteja aí uma crítica à mídia de que ela veicula o fato, mas não se solidariza com as vítimas. No entanto, trata-se de uma ilação, não há indícios suficientes em “Árido Movie” para tal análise. Quem está mais próxima de Jonas, até mesmo pela natureza de sua atividade, é Soledad, a videoasta, (Giulia Gam),que o atrai para suas ações e para seu colo. Ela, mulher, está mais à vontade em pesquisar o eterno problema da carência de água nordestina e do misticismo, centrado no personagem Meu Velho (José Celso Martinez Correia). Ambos se defrontam, ela passiva, ele ativo, numa contradição entre o ágil e questionador José Celso, do teatro engajado, e Meu Velho, contemplativo, evasivo, cínico.
                  
O uso que ela faz do trabalho arrancado de Meu Velho é  significativo dos tempos atuais. As projeções do místico não chegam às massas, mas a um seleto grupo de aficcionados de artes visuais – a instalação. É mais um guru midiático do que voltado para a ação junto às massas.Tudo é voltado para o contemplativo, o observar, não o impulsionar. O que termina sendo uma característica do próprio “Árido Movie”. Os personagens, todos classe média, a exceção da índia, de quem todos se aproveitam, não reagem, buscam o prazer pelo prazer. A trinca de amigos de Jonas não o seguem por solidariedade, mas por ir em busca de uma vasta plantação de maconha. Ali se deliciam e não sabem o que fazer para saciar sua ânsia de fumaça e fumaça e fumaça, já que passam todo o tempo falando nisso e fumando e fumando e fumando. Aliás, não só eles, Jonas, Seu Zé, Soledad, vivem às voltas com a canabillis. Parece que todos eles, sem exceção, só encontram prazer em emitir fumaça e espargir o cheiro de erva queimada.

                 
Novos coronéis perderam as velhas características

                 
O hedonismo, ao que parece, tornou-se o centro do comportamento pós-moderno, alimentado pela erva e chá de folhas alucinógenas. Nada mais há para se preocupar. Poderia ser uma característica dos forasteiros, mas também Seu Zé o aprecia. Menos os herdeiros forçados do pai de Jonas – eles estão mais interessados em preserva a mística violenta e capitalista da família do que se perder em meio à fumaça. Terminam por ser mais realistas do que os forasteiros, inclusive Jonas, que, pelo interesse da avó, deveria se unir a eles. Estes, sim, mesmo transformados, modernizados, ainda representam as velhas oligarquias nordestinas. São eles que, trajados de roupas modernas, perderam o chapéu, as perneiras, o jibão, as botinas de couro e a carabina. Usam pistolas modernas e carabinas. A ânsia de sangue, porém, continua a mesma. Jonas, ao ver-se em meio à vendetta, revela-se mais do que um herdeiro dos antigos coronéis um fraco.
                
Não há, assim, em “Árido Movie” uma total ruptura ou contraposição radical com a narrativa das obras que trataram do nordeste. Arranhou uma estética sem criar outra, igualmente revolucionária. Um dos encantos de “Deus e o Diabo da Terra do Sol” eram os movimentos de câmera, que traduziam toda uma inquietação. Lírio Ferreira tenta ritmar seu filme, com movimento de câmera que mais parecem firulas, do que traduzem delírio ou alucinação da trinca de amigos de Jonas. Ao mover sua câmera na seqüência do bar de Seu Zé, ele não nos dá a sensação de que eles estão “doidões” ou alucinados, mesmo. Muitas vezes câmeras estáticas, com cortes rápidos, conseguem transmitir mais alucinação do que  movimentos circulares de câmera. Estes são, no entanto, dos menores males de “Árido Movie” – seu defeito principal é a falta de contundência da história, aprofundamento do perfil do personagem principal – Jonas. Ao tentar desviar a narrativa para vários personagens, perdeu o centro da história, que, devido a isto, não emociona, contribuindo para isto o final chocho e sem graça. O que é uma pena, a proposta inicial prometia mais do que se viu no desenrolar da trama.
               

Árido Movie. Brasil, 2006, 16 anos, 1h58. Direção: Lirio Ferreira. Elenco: Guilherme Weber, Giulia Gam, Selton Melo, José Dumont, Matheus Nachtergaele

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