As Aventuras de Pi: A fantasia do real

Cineasta taiwanês Ang Lee mescla mitos e crenças orientais para discutir o “real” construído pela sociedade ocidental no 3º Milênio

Entre a fantasia e os mitos o homem do 3º Milênio prefere a realidade, mesmo que ela não traduza a complexidade da sensibilidade humana. Com esta premissa, o cineasta taiwanês Ang Lee chega ao desfecho deste seu metafísico “As Aventuras de Pi”. Ao longo de 127 minutos, ele mescla visões católicas, hinduístas e budistas, numa epopéia que começa em Pondicherry, na Índia, e termina no golfo do México. Usa, para isto, um longo flashback, centrado na conversa de Piscine Patel, Pi, adulto (Irrfan Khan) com o Escritor (Rafe Spall) interessado em suas místicas reflexões.

Ele desfia para o Escritor sua infância, a descoberta de que integra os ciclos da natureza e a consolidação de suas crenças religiosas. Neste périplo, ele faz o espectador despregar-se do real, para mergulhar no universo dos mitos hinduístas. É como se, de repente, o inconsciente liberasse suas fantasias, seus temores, seus anseios. E precisa ancorar-se, rápido, na realidade que lhe escapa.

Pi recorre a Vishnu, um dos vértices da trindade hinduísta (os outros são Shiva e Heineken Brama) para dar equilíbrio às suas crenças. Vishnu, que significa tudo, se desvenda em seus delírios e sonhos, durante o tempo em que fica à deriva num barco salvavidas no Oceano Pacífico. E se une aos animais (hiena, zebra, orangotango, tigre) que com ele sobreviveram ao naufrágio do navio em que emigrava com a família para o Canadá, num constante engolir uns aos outros para continuar vivos. Assim, ele projeta seus medos e expectativas.

Lee equilibra mitos e deuses

Lee equilibra mitos e deuses orientais com leituras psicanalísticas. A mãe de Pi, Gita (Tabu), flutua morta e envolta num manto branco dentro de uma bolha cheia de animais e plantas. É o temor de Pi de não mais vê-la, como se ela pudesse salvá-lo. Lee contrapõe-se à visão do cinema realista e, ao mesmo tempo, mostra a existência de outro olhar: o de que o homem integra a natureza, mas dela se descola para se submeter ao sistema de produção capitalista, com graves prejuízos a sua própria sobrevivência.

No entanto, a natureza é cheia de mistérios, armadilhas e surpresas. Pi o descobre ao aportar com seu companheiro Richard Parker, o enorme tigre de bengala, numa ilha que durante o dia é um paraíso, cheio de suricatos e água cristalina, para à noite se tornar inabitável reserva de líquidos ácidos. Ou dividir-se entre a perplexidade e o deslumbre pelo cardume de peixes que forma um arco sobre seu barco salvavidas. E o livra e a Richard Parker da fome. O oceano, desta forma, tanto pode tragá-los quanto fazê-los sobreviver. Depende do uso que fizerem dele.

Em suma, Pi e Richard Parker, que disputam comida e quem sobreviverá ao outro, são Robinson Crusoé e Sexta-feira. Um alivia a solidão do outro. Aprendem a conviver, a usar suas habilidades, evitando o pior. Estão sozinhos não numa ilha, mas no Oceano Pacífico, sem possibilidade de salvação. O medo que Pi tem do tigre, no entanto, acaba por ajudá-lo. É mais uma visão ecológica, politicamente correta, de que a natureza se equilibra. Nem sempre. A luta desenfreada do capital pelo lucro a tudo desequilibra.

Péritos preferem a ficção do real

Nesta longa segunda parte, quase um filme dentro do filme, conta mais o uso que Lee faz dos efeitos especiais, da fotografia que dimensiona a solidão de Pi e de Richard Parker e da gama de técnicas narrativas (suspense, drama, fantasia, alegoria, epopéia), para não entediar o espectador. O entreato de Pi no Pacífico é que vai sustentá-lo. Sua história deverá ser crível para convencer os peritos da seguradora japonesa que investigam os motivos do naufrágio do navio? Ocorrem então duas situações: 1 – a da fantasia, do realismo mágico, soa como pura imaginação; 2 – a do realismo, embora “fictícia”, é mais condizente com as necessidades de provas dos peritos.

Dá-se a antiga questão filosófica: Ainda que eu não saiba onde fica o Quiriquistão, ele existe. Lee joga com a necessidade que tem o homem da sociedade tecnológica de ter razões comprováveis, descurando o sensorial, o mitológico, que pode traduzir melhor o que, de fato, ocorreu. E pode redundar numa meia verdade. Pi, assim, se vê obrigado a transpor sua história para o perceptível. Ao fazê-lo, suas aventuras perdem o encantatório, transformando a verdade numa ficção. Fica mais realista para os peritos e menos para ele.

Esta forma de Lee tratar a dualidade fantasia/realidade contribui, noutro nível, para a compreensão da abordagem do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, em seu emblemático “Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas”, 2010. Existe outra forma de tratar religiões, mitos e símbolos orientais, fugindo à dominação cultural/religiosa/ocidental/cristã, eivada de armadilhas capitalistas/imperialistas. Embora use a simplicidade narrativa, às vezes reducionista, Lee escapa à estigmatização das crenças orientais. É salutar.

“As Aventuras de Pi”. (“Life of Pi”). 
Drama. EUA. 
2012. 127 minutos.
Música: Mychael Danna.
Efeitos Especiais: Bill Westenhofer.
Montagem: Tim Squyres.
Fotografia: Cláudio Miranda.
Roteiro: David Magee, baseado na novela de Yann Martel.
Direção: Ang Lee.
Elenco: Suray Sharma, Irrfan Khan, Adil Hussain, Rafe Spall, Gérard Depardieu.

(*) Oscar 2013: melhor diretor, fotografia, efeitos especiais, música.

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