As urnas e os sonhos: o fascismo vive da quebra da confiança na democracia

Bolsonaro, ao levantar a bandeira do voto impresso, opera à moda fascista de desacreditar as eleições e a democracia, com intenção de tensionar uma alternativa golpista

Fotomontagem feita com as fotos de: Sérgio Lima/Poder 360; Dids/Pexels e Marcelo Camargo/Agência Brasil

Coluna por supuesto

No Brasil, há algumas semanas, o presidente anunciou que não aceitaria o resultado das urnas. Rebelde perante as diretrizes constitucionais que consagram um regime político ancorado na soberania popular, ameaça sair das “4 linhas”, em alusão, precisamente, às balizas da Carta de 1988.

Que falta para deflagrar processo de impeachment? Em termos jurídicos absolutamente nada. A conduta, assim como outras tantas praticadas pelo chefe do executivo, é perfeitamente emoldurável na interpretação dos incisos do artigo 85 da Constituição.  Em termos políticos falta a disposição dos que por covardia, atraso ou benefício particular, não endossam o processo.  

No meio deste contexto conturbado esta semana naufragou a PEC número 135-A, que acrescentava o parágrafo 12 ao artigo 14 da Constituição Federal com o teor de que na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, fosse obrigatória a expedição de cédulas físicas que seriam depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria. A Câmara rejeitou a proposta, que não obteve os 3/5 dos votos da Casa, como exige o parágrafo 2º do artigo 60.

Porém, se em termos técnicos-jurídicos a questão foi sepultada, duvidamos que o presidente decida parar com as condutas que cotidianamente criam tensões institucionais. Em nosso modesto juízo, a batalha presidencial parte de, sem indícios nem provas, aos olhos de todos e todas, fazer o que melhor sabe fazer: tentar gerar a desconfiança, minar ante os mais desavisados, os imprudentes e os carentes do bom senso, a credibilidade no sufrágio como direito de todos e o voto como seu instrumento direto e com valor igual para todos.

Só assim se explica que logo da votação na Câmara, muito embora a máxima liderança – pelo menos formalmente – dessa Casa do Congresso viesse a público dizer, como se fosse um grande anúncio, que tinha “ouvido do presidente que ele respeitaria o resultado do plenário”, desde Planalto tenha se escutado que a próxima será uma eleição “(…) onde não vai se confiar no resultado das apurações”.

O presidente do STF, Luiz Fux, o presidente da Câmara, Arthur Lira, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o presidente Jair Bolsonaro| Foto: Marcelo Camargo/AgBR

As reflexões vão e voltam, nos jornais articulistas lembram de épocas difíceis, mas existe uma espécie de consenso em que esta realidade é inédita. A impressão que temos é a de que o presidente, como dizia André Malroux se referindo a alguns governantes da Europa da Pós-guerra, começou a pensar em termos de destino, de fim de uma etapa, de um ciclo. Entre a indignante quantidade de vítimas da pandemia, os possíveis resultados da CPI, as manifestações de rua que o colocam no centro da crise nacional, o aprendiz de tiranete se inquieta com os frutos da sua própria obra e então não lhe resta senão demonstrar sua dúvida sobre os valores democráticos e, com isso, pela civilização política como um todo, teimando em acreditar que a sociedade precisa dele, do super-homem que “encarna a Constituição”.

Lembrei de algumas leituras nestes dias. Numa obra de Simone de Beauvoir, “O Pensamento de Direita, hoje”, há uma citação de Jules Romains, afirmando que “ser de direita é temer pelo que existe” (1). A frase trouxe à minha cabeça uma aula de Maria Rita Khel, que certa feita na PUC de SP comentava sobre como numa sociedade na qual o imaginário prevalece, porque o imaginário formata e elabora o real, todo conduz à cultura totalitária. E isso é muito bem aproveitado pelos retrógrados de plantão.  

Por essa mesma via, Leandro Konder, no seu “Introdução ao Fascismo”, expunha como este movimento reacionário e conservador, com seu pragmatismo radical, explorou os meios de propaganda manipulando as maiorias silenciosas que ficam em casa bebendo coca cola e assistindo televisão. Novos padrões de conduta política são inculcados sob a capa das atitudes não políticas, afirmava Konder (2).  

Pôr sua vez o Mestre Florestan alertava que o pretexto mais utilizado pelo fascista que disputa a hegemonia é dizer que está “defendendo a democracia”. Na verdade, com essa frase encobre sua pretensão de enrijecer o sistema político impedindo a ação daqueles que se opõem à hegemonia do pior de uma burguesia. Nas suas palavras, o fascismo se serve da “(…) tecnocratização e militarização das ‘funções normais’ do Estado capitalista”, construindo um “braço político armado’ da grande empresa corporativa (…)” (3).

Na condição atual, seria ingênuo não pensar que atacando Ministros do STF e os instrumentos do sistema eleitoral em seu conjunto não se busque gerar uma espécie de ressentimento coletivo. Por isso o mais relevante a ser analisado não é o resultado da PEC, senão a desestabilização ocasionada pela maneira franca como se reproduz a mentira com relação à segurança no voto eletrônico, criando as condições para um eventual uso supostamente justificado, de uma futura violência e supostamente legitimado pela suspeita nos resultados eleitorais. Na tática de quem pretende alimentar inseguranças, se o voto fosse ainda impresso, a PEC teria sido proposta para instalar outro sistema, a confusão também estaria criada e o resultado seria idêntico no cálculo político. 

Manifestante pedindo voto impresso em Brasília I Foto: Cláudio Marques/Futura Press/Estadão Conteúdo

Na democracia representativa o sufrágio universal implica que cada voto é apenas um, precisamente por seu anonimato. Assim, sendo cada pessoa numericamente um voto e como se desconhece quem votou e como votou, a regra de que a maioria se pronunciou em tal sentido passa a ser o critério decisivo para definir a agenda pública.

Como bem pontua o professor A. Sahui nos seus estudos sobre “Estado, democracia e cidadania no México”, a suspeita, por alguma causa ou razão atribuída ao processo eleitoral ou aos elementos do sistema, produz a grave quebra na firmeza e conteúdo da decisão. Busca-se semear que o resultado foi prefixado, que o vencedor já era conhecido e que o conjunto da institucionalidade trabalhou ou favoreceu uma certa opção política de forma deliberada. Em conclusão: as pessoas devem ficar com a ideia incutida de que as eleições foram um arremedo antidemocrático. Assim, não adiantaria participar, senão buscar uma saída de força. Tal foi a lógica de Trump nos Estados Unidos na última campanha naquele país.

Também nesse sentido, a questão que merece uma avaliação muito mais precisa, longe do senso comum orientado por uma mal-entendida ideia de “racionalização do sistema de partidos”, são as coligações, aprovadas na Câmara e que precisam da votação no Senado.

As coligações favorecem os partidos esmagados pela dinâmica fundada em que as minorias eleitorais não elegem, senão que estão condenadas a perder o voto porque sufragam precisamente pelos pequenos partidos, que não possuem condições ou concorrem precariamente. Como diz G. Sartori ao identificar a chamada democracia vertical, o pior que pode acontecer é que vigore um sistema no qual os perdedores sejam eliminados e com isso então baste. Os perdedores são eliminados drasticamente do jogo nos sistemas de escolha uninominais ou menos drasticamente nos proporcionais. O resultado é que a maioria eleitoral muitas vezes é a maioria hegemônica de um grupo reduzido, dominante conjuntural ou estruturalmente (4). As coligações só fortalecem a representação e especialmente a efetividade dos direitos políticos

Há que observar que dentro de um processo de regeneração democrática, como o iniciado em 1988, o voto é um fator entre outros de extrema importância, como a consistência dos partidos, as garantias para o debate – que inclui a elaboração e apresentação de uma proposta programática – a proteção diante da ingerência do poder econômico que não raro “sequestra” a vontade popular e ainda o direito de ser e se constituir como legítima oposição conforme regras de jogo predefinidas a alicerçadas na Constituição.

Por isso, não está de mais dizer que quando se fala da vitória democrática de um ou outro candidato é preciso distinguir a vitória no voto – numérica – da qualidade da democracia. E essa distinção deve ser bem entendida, nunca subdimensionada e muito menos menosprezada. Simplesmente porque a vitória no voto expressa uma conjuntura, enquanto a regeneração ou construção de um regime democrático é uma questão estrutural, ligada, portanto, à efetividade da participação e deliberação popular. O Brasil precisa retomar quanto antes a pauta dos avanços democráticos, por supuesto.  


Notas e Referências

(1) A obra foi publicada pela Paz e Terra em São Paulo em 1967. Página. 3.

(2) Há um dossiê excelente publicado pela Fundação Perseu Abramo sobre os fascismos bastante pertinente e de obrigatória leitura. Ver Revista Perseu n. 16. 2018.  

(3) Florestan Fernandes. Notas sobre o fascismo na América Latina. São Paulo: Expressão popular. 2015. P. 34.

(4) Giovanni Sartori. Democracia coisa e. R. Libri: Milano. Pp. 90 e seguintes.

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