“Borboletas Negras”: Retrato da época

A poeta como ser maldito e libertário. Ingrid Jonker (Carice van Houten) sintetiza a um só tempo a mulher rompendo as amarras na África do Sul dos anos 60 e a poeta em conflito consigo mesma. Numa das emblemáticas sequências deste “Borboletas Negras”, a diretora holandesa Paula Van Der Oest, em precisos e belos movimentos câmera no pequeno espaço de seu quarto, coloca-a numa espécie de transe criativo. Ela lança sobre a parede estrofes que a decoram, como tatuagens na argamassa coberta de tinta.

O filme é sobre os demônios em choque em seu inconsciente. Sintoma da loucura, de incontida carência de afeto, de incompreensão dos homens que a cercam e tentam dominá-la e de sua própria busca do abismo. Ingrid, jovem, elétrica, enfrenta sua busca de reconhecimento como poeta e a plenitude do amor. Numa cena diz ao cinquentão escritor Jake (Lian Cunningham): “Tudo que eu quero é um lar”. O dela se desfez. Foi viver com a filha pequena Simone onde desse. Inclusive na casa do deputado conservador e racista, Abraham Jonker (Rutger Hauer), seu pai.

O filme é também como ser poeta e viver na África do Sul do apartheid, dos passes para africanos, de vista ser como prostituta pelo pai, quando queria fazer com os homens o que eles fazem com as mulheres. Simplesmente tê-los e largá-los. Jake, a princípio, parece entendê-la, depois se revela machista, ciumento, controlador, embora apaixonado por ela e admirador de sua criação poética. Ela pulsa mais rápido do que ele, enxerga os choques à sua volta e se insurge contra eles.

O filme é também sobre seus atritos com o pai. Autoridade, com poder de banir o artista que não se submeta ao apartheid. Jake vive confinado numa casa à beira da praia na Cidade do Cabo, Nikosi Skosana (Thamanqua Nbongo), o jovem escritor africano, perseguido, escapa pelas fronteiras do país vizinho. E ele, Abraham, à mesa com Jake, Ingrid e o dramaturgo Ulys Krige (Graham Clarke) censura o conto do agora genro. “Para nossa felicidade os negros não são capazes de captar alegorias” e acrescenta: “Fomos escolhidos por Deus para governar este país”. Jake, num instante de glória, responde: ”Os nazistas pagaram caro pela presunção de se acharem uma raça superior”.

Filha tardia do romantismo

Ao juntar estas propostas do roteirista Greg Latter e da diretora Oest têm-se a impressão de que buscam o equilíbrio entre a poesia e a política, sem cair na mensagem fácil. Ingrid, em princípio uma poeta dilacerada, escreve sobre o que a perturba: “Tudo que quebra ou cai ou morre como a ejaculação da semente, só tem um significado, a traição” – depois, se insurge contra a crueldade, a discriminação, a execução da criança africana, e sua poesia se torna manifesto contra o apartheid. “Esqueça a justiça, porque ela não existe”, vaticina. Puro engajamento centrado na escrita.

Duas sequências elucidam seu rumo, não como poeta, pois ela já não se circunscreve a este jarro: a do carro com Jake, quando ajudam Nkosi a escapar, e briga com os policiais que exigem dele o “passe” para circular naquela área, e a do ônibus ao enfrentar o motorista racista, que se recusa a abrir a porta para o africano entrar. A cena remete à Rosa Parks que se recusou a sentar no fundo do veículo, porque a parte da frente era destinada aos brancos. A sensibilidade poética de Ingrid a faz enxergar a insuportável violência contra outro ser humano.

Escritores, normalmente, tentam escapulir à estratificação social – esta depende mais de sua posição políticoideológica, de como expõe a sua arte, ou de sua origem de classe. Ingrid apenas enxerga e vai em frente. Assim flui sua vida: sexo compulsivo, despudor, pouco importando se na casa do pai, com ele ao lado, se na praia ou se num quarto sujo de hotel, sem dinheiro ou perspectiva de futuro. Ela, à semelhança dos jovens dos anos 60, enfrenta seus impasses, construindo sua arte.

Lógico que Ingrid é dark, filha tardia do romantismo, que escreve suas poesias nas paredes da Cidade do Cabo e nas vitrines em Paris. Que faz de sua arte a vivência cotidiana. E usa o corpo para o prazer e para se desfazer do fruto do desamor, em dois abortos. E o conta a Jake, numa grande cena de dois atores enormes: Carice e Liam. Atores com cara de personagem, sem glamour algum. Ele chora ao ouvi-la falar de quem já se foi. E ela apenas o observa. Ambos perderam. Não se vê duas estrelas, elas se diluem em Ingrid e Jake.

Se rompem com o distanciamento brechtniano ou se agarram a Stanisláviski ou a Grotowski pouco importa. A câmera de Oest está à altura da cama flagrando-a e a Jake, como está à altura de sua face quando pede ao pai, a quem ama, para ler seu poema “A Morte da Criança de Nyanga” e ele o rasga, depois de lê-lo. Isto que a empurra para as sombras e o abismo. Se há algo a reclamara deste “Borboletas Negras” é a metáfora das ondas impacientes para sintetizar seu estado psicológico. É o velho clichê. Resta a beleza e a precisão das imagens e o claro escuro de Giulio Baccari. Ele ajuda Oest decifrar Ingrid e seu tempo.

“Borboletas Negras” (“Black Butterflies”). Drama. Holanda/Alemanha/África do Sul. 2011. 100 minutos. Música: Philip Miller. Fotografia: Giulio Baccari. Roteiro: Greg Later. Direção: Paula Van Der Oest. Elenco: Carice Van Hourten, Rutger Hauer, Liam Cunningham, Ulys Krige, Tamangua Nbongo.

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