C.R.A.Z.Y – Loucos de Amor: Cicatrizes de uma época

Os anos 60 e 70, vistos sob a ótica da família e as rupturas comportamentais que sofreu, são o centro do filme do diretor canadense Jean-Mac Vallée

A juventude é uma fase de transição cheia de impasses e descobertas. Inúmeras mutações ocorrem, sem que ela se dê pelas barreiras e estruturas sociais que a impedem de viver como dita seu comportamento. Há uma busca de identidade que ultrapassa os limites de seu núcleo familiar. Nenhuma novidade há nisto. Inúmeros filmes já navegaram por estas águas turbulentas, tendo os anos 60 e 70, como tema central. “C.R.A.Z.Y – Loucos de Amor”, do canadense Jean-Marc Vallée, volta àquele período, centrando a narrativa numa família classe média, cujo objetivo era apenas criar os filhos no melhor dos lares. Ambiente este em que as figuras do pai e da mãe ocupam os espaços tradicionais e os filhos devem lhes seguir, até a maturidade, quando, então, constituirão suas próprias famílias.
                  


 Vários caminhos, no entanto, contribuíram para que as relações familiares não se dessem conforme o ansiado. E foram ditados pelas rupturas radicais que engendraram as transformações sociais, políticas e econômicas naqueles anos. E o núcleo familiar seria uma das estruturas sociais – e centrais – mais atingidas. Os papéis das mulheres, da juventude, dos negros, dos povos colonizados viraram de cabeça para baixo. O clamor por mudanças comportamentais, liberação do corpo, de tendência sexual e, principalmente, da busca de saídas condizentes com as tendências da época, tornaram as relações entre pais e filhos algo próximo do inferno. Jamais havia se visto procura de sensações, prazeres e emoções tão intensas.


                 


Alienação, marca de uma época


                  


O hedonismo, o individualismo e a alienação se tornaram as marcas de um tempo que poderia ter levado a sociedade capitalista a um caminho sem retorno. A desestruturação de molduras seculares, a ruína das relações entre pais e filhos, entre irmãos e outros indivíduos, a descrença no poder do sistema capitalista como gerador de igualdade e liberdade e a carência de opções para a juventude foram os resultados mais visíveis de uma era de mutações. Vallée mostra-os, a partir da família Beaulieu, cujo objetivo era seguir adiante e aportar em um bom porto. Como membros da classe média canadense, próspera e bem educada; nada poderia impedir que fosse assim. O pai, Gervais (Michel Côté), cumpria seu papel de progenitor, e a mãe, Lauriane (Danielle Proulx), o de gerar os filhos numa seqüência até chegar a cinco.
                



 A ebulição social em curso, com aguda projeção para os conflitos, tendo a oposição EUA/URSS como centro, gerava outras formas de relações. O feminismo, o movimento de liberdades civis, as passeatas contra o racismo, a descolonização da África e da Ásia e, sobretudo, as Revoluções Cubana e Chinesa iriam contribuir para isto. A exemplo do brasileiro Edgard Navarro, em “Eu me lembro”, Vallée faz o mundo passar pelos olhos – no caso os ouvidos – do espectador através da música. É ela quem dita o comportamento, mostra as preferências e o perfil de gerações. E transita entre Patsy Cline, Charles Aznavour, David Bowie, Rolling Stones e Pink Floyd, com marcações operísticas e líricas.


                


Juventude viveu perigosamente


                


É neste clima que Zac (Marc-André Grondin) e seus irmãos Raymond (Pierre-Luc Brillant), Cristian (Maxime Tamblay), Antoine (Alex Gravel) e Ivan (Félix-Antoine Despatie) crescem. Cada um deles irá adotar uma faceta daqueles anos, com as naturais tendências por uma e outra vertente do ciclo 60 e 70, anos em que a juventude viveu perigosamente, em meio a mudanças que abalaram os alicerces conservadores. O horizonte de crescimento, de estudo e de casamento, que antes definia toda uma vida, passou a ser o “viver para o aqui e o agora”, segundo os estimulantes à disposição. Raymond seguirá a via das drogas, da limitação dos sentidos na relação com a realidade; Zac entre visões místicas e opções sexuais agressivas para a época; Cristian irá preferir a reflexão; Antoine o culto do fisiculturismo; e Ivan, muito jovem, não terá caminho definido. Nada que escape à marca de tempos rebeldes.
                



A questão é que no cinema, que aciona os sentidos, a partir da visão e da audição, as cenas se encadeiam de forma a ganhar significado. Vallée faz com que o espectador mergulhe no universo familiar, apontando hesitações, incompreensões, machismo e autoritarismo na família Beaulieu. Gervais cria os filhos para serem garanhões, pregadores das vizinhas e seus cúmplices nas preferências musicais. Cria-os de maneira a que eles sejam o que ele quer. Mas ao fazê-lo esquece do entorno, da época em que vivem, da sociedade que se modifica. Modifica-se a seus olhos, como uma afronta ao que ele é, ao que almeja para os filhos.
                



Personagem se espelha em David Bowie


               


A cada momento que se eles lhes apresentam de forma adversa à qual ansiava, ele entra em pânico. Principalmente quando se trata de Zac, seu quarto filho, cujas tendências vão, ao longo do filme, ficando mais claras para o espectador e menos para ele. Zac é pêndulo que oscila entre a homofobia e a androginia. Representa a indefinição sexual de um jovem na fase de crescimento. Visto desta forma, fica restrito, pois Zac é o personagem que sintetiza a androginia configurada numa das fases da carreira do inglês David Bowie, que marcou toda uma geração. Difícil para Gervais compreender estas mutações, de ser um humano, embora sendo seu filho, não se define por uma e outra tendência. Nada mais anos 70 do que isto. Eram os anos de ressaca dos 60, mas ainda sem um caminho definido.
                



Entender estas transfigurações era demais para Gervais, acostumado a centrar sua comemoração natalina no límpido comportamento musical de Aznavour. A complicar ainda mais a compreensão das preferências sexuais do filho estavam o misticismo e os poderes sobrenaturais deste. Justo ele, cheio de dilemas e hesitações, tem o poder sensorial, de ter visões e de operar curas. A androginia assume outro caráter, o de “salvador de almas”. Sua viagem a Jerusalém tem o duplo caráter de afirmação de sua sexualidade e de aprofundamento de seus poderes místicos. O sagrado, aqui, não é porque assume o dom da cura, sim porque o usa para libertar a si próprio. Diferente de Raymond que mergulha nas drogas e não tem chance de escapar ao estigma daqueles anos: o de se sacrificar por um prazer que limita seu existir.


                



Gervais questiona Igreja Católica


                


A convivência com a androginia e os estimulantes, seja de que natureza for continua até hoje. Brota-se, como diz Vallée, no seio da família. É dela que emergem os seres que assumem comportamentos adversos aos ditados pela sociedade judaico-ocidental-cristã. Gervais, num de seus instantes de insurgência contra a Igreja Católica, põe em questão o comportamento do pároco e sua opção pelo recolhimento longe dos prazeres sexuais, que, para ele, continuam a ser desfrutados. Nesta discussão, sua mulher, Lauriane, surge como mediadora; aquela que procura atenuar os choques e sucumbe a olhos vistos, porque, como o marido, ignora de onde vêm as turbulências que assolam sua família. “C.R.A.Z.Y – Loucos de Amor” torna-se, deste modo, um filme que reflete sob a aceitação dos filhos como eles são e não como a projeção que os pais deles fazem.
                



 Não era fácil nos anos 60 e 70 quando os alicerces ainda estavam bem plantados, embora não mostrassem as ruínas que os sustentavam. Muitos menos hoje, quando às turbulências passadas foram acrescentadas outras não menos problemáticas. Se a sociedade capitalista não ruiu naqueles tempos, sobreviveu com o que restou deles. As drogas se alastram a tal ponto que virou não uma tendência, mas um apêndice presente no cotidiano da juventude como forma marginal de trabalho e de consumo. As opções sexuais se ampliaram a ponto de ganhar as ruas nas “paradas gays”, fatos mais auspiciosos que os dos estimulantes. Estes, materializados nas drogas, não levaram seus usuários a avançar para uma sociedade libertária. Ou seja, eles          confrontaram o sistema, naquela época, mas não elucidam suas fraturas a ponto de substituí-las por estruturas livres do individualismo, do consumismo e do hedonismo.



“C.r.a.z.y” é filme-divã


               


C.r.a.z.y – Loucos de Amor”, com seu jeito de filme-divã, estimula uma reflexão sobre o que restou dos anos 60 e 70, e leva o espectador a analisar seus reflexos. A contestação da guerra do Vietnã, os movimentos de liberdades civis, a onda hippie com o slogan “paz e amor” e suas comunidades alternativas, os shows orgiásticos de Woodstock e Monterrey e a desmistificação da família e do casamento, geraram, sem dúvida, a contracultura. E significaram momentos de afirmação de uma geração. E o mergulho no mundo dos estimulantes, das várias marcas e naturezas, foi, em princípio, uma saudável afronta ao sistema, mas acabou por representar o sintoma mais visível da decadência do capitalismo. Hoje eles penetraram no tecido de toda a sociedade, sem que movimento algum catalize essa descida aos esgotos. Espelha-se o fim de uma era, talvez ninguém ainda o esteja percebendo.
                  


Inegável é que se trata de uma etapa da história do capitalismo. E reflete o beco sem saída em que ele se meteu, a partir do núcleo que o sustenta. Vallée diz que a família teve que aceitar seus filhos como produtos de sua época, não como projeções de sua moral e ética. E os filhos, ainda que sobrevivam, o fazem sob o risco de ter de enfrentar o inferno para serem aceitos como são. Caso contrário; todos naufragarão, sem entender o que, na verdade, acontece. Pelo caminho podem ficar alguns deles, atropelados pelo espírito hedonista, narcisista e autodestruidor de um momento histórico. Não deixa de ser romântico. E “C.r.a.z.y – Loucos de Amor”, embalado por músicas que ajudaram a moldar comportamentos, traduz bem a mutação que o núcleo familiar passou – e ainda passa.


                   


Comportamento de Bowie moldou os anos 70


                   


O artista passou a ser aquele que espelha a época com suas músicas e seu comportamento. Dá para perceber a presença de David Bowie nas ações, gestos e aparência de Zac. O uso de sombras, maquiagem, batom, cílios pintados e os cabelos cheios e as inúmeras correntes e cintos e roupas pretas. Não é uma imagem que se cria, mas uma persona. E os jovens o imitaram, o copiaram até nos trejeitos. Muito diferente de Aznavour, imitado por Gervais apenas no cantar. E mostra o quanto ambos, filho e pai, estão distantes em sua projeção. Em Gervais a canção é só a canção, usada em momentos lúdicos, de confraternização; nada, além disso. Em Zac há toda uma composição; a música o estimula a ser Davi Bowie, imitá-lo até com ele fundir-se.                       
                           


É um assumir-se sem medir as conseqüências e os ferimentos e dores que provoca. Este é o resultado mais palpável daqueles anos, cujos reflexos são sentidos hoje sem meias-tintas. A validade de C.r.a.z.y – Loucos de Amor” está em permitir tal análise. Segue a vertente reflexiva do cinema canadense, a exemplo de “Invasões Bárbaras”, de Dennys Arcand, de “O Fio da Inocência”, de Atom Egoyan, ou “Videodrome”, de David Cronenberg. Um cinema que não alcança grandes vôos por estar sufocado por Hollywood, muito mais do que outras cinematografias. A maioria de sua produção não chega ao Brasil, quando o faz surpreende, embora “C.r.a.z.y – Loucos de Amor” não se eleve acima do filme-padrão. Seus recursos são os do melodrama, com ação canalizada por Zac, tendo a música como impulsionadora da narrativa. Há a dicotomia entre gerações: uma centrada em Aznavour, outra em Bowie, com Patsy Cline unindo-as. É dela o sucesso que marca o filme do princípio ao fim: “Crazy”. Um sucesso que embalou gerações e hoje está esquecido, mas provocou muito menos barulho que o disco “Ziggy Stardust”, de Bowie. Um barulho que tornaria as relações entre Gervais e Zac menos ácidas e dotadas de uma compreensão difícil de conquistar.


 



C.r.a.z.y – Loucos de Amor” (C.R.A.Z.Y), Canadá, 2005, 127 minutos, 14 anos. Roteiro: François Boulay e Jean-Marc Vallée, baseado na infância de Boulay. Diretor: Jean-Marc Vallée. Elenco: Michel Côté, Marc-André Grodin, Danielle Proulx, Pierre-Luc Brillant.


(1) Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, 2005; (2) Prêmio de Melhor Filme Canadense no Festival de Toronto.

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