Caio Prado Júnior e o povo brasileiro

As obras de Caio Prado Jr., publicadas nas décadas de 1930 e 1940, foram marcos importantes na mudança de perspectiva da historiografia e da sociologia brasileiras. Elas, dentro de uma perspectiva materialista, a partir do que foi denominado

Caio Prado concentrou suas análises na forma particular que o país se inseriu na divisão internacional do trabalho desde os meados do século XVI. O Brasil , ao contrário dos Estados Unidos, se constituiu uma economia colonial voltada, exclusivamente, para produção e comercialização de produtos primários (agrícolas ou minerais) e para cumprir essa finalidade montou-se uma estrutura econômico-social assentada na grande propriedade rural e na mão de obra escrava.

 

Na contramão de outros autores, particularmente Gilberto Freyre, não partiu de uma região determinada (nordeste) – ou de uma perspectiva senhorial (a Casa-Grande) – para daí generalizar e procurar construir uma definição de povo e “caráter brasileiro”. Dante Moreira Leite chegou a dizer: “Caio Prado Jr. representa um momento decisivo na superação do pensamento ideológico: as características da colônia não são determinadas por misteriosas forças impostas pelo clima ou trazidas pelas raças formadoras, mas resultam do tipo de colonização imposto pela economia européia (…) já não se trata de explicar a situação do país através de um ou outro fator – a raça, o clima, a escravidão, as características psicológicas dos colonizadores – mas de interpretá-la em função do sentido da colonização.”

 

A relação desigual que foi se constituindo historicamente entre colônia e metrópole (centro-periferia) – que tem suas origens remotas no século XVI – e perdura até os dias de hoje -, tem centralidade no seu esquema teórico. Por isso não tem sentido as afirmações de que Caio Prado teria subestimado o papel do colonialismo (e do imperialismo) e, portanto, da própria “questão nacional”. Pelo contrário, foi um dos primeiros que abordaram o problema da dependência externa e a necessidade de superá-la.

 

 

 

O povo em Evolução Política do Brasil

 

 

 

Como já vimos nos artigos anteriores, a noção de povo de Caio Prado e Werneck Sodré se insere no interior de uma antiga tradição marxista. Mas, apesar de partirem de uma mesma matriz teórica e política, os dois principais historiadores marxistas brasileiros não definem o povo de uma única e mesma maneira.

 

Se para Sodré partes (frações e camadas) das classes economicamente dominantes podem, em determinadas fases do desenvolvimento histórico, se constituir em povo, (ex. a classe latifundiária durante a luta pela independência), para Caio Prado existiria uma separação entre os setores economicamente dominantes e os agrupamentos sociais que ele definiria como povo. Para ele a definição de povo estaria vinculada à situação de dominação política e, fundamentalmente, econômica. Vejamos, então, como Caio Prado Jr. procurou definir a noção de povo na sua primeira obra Evolução Política do Brasil de 1933.

 

Durante o processo da nossa Independência, o “partido brasileiro” teria sido o representante das “classes superiores da colônia, grandes proprietários rurais e seus aliados” e, por isso, não compunham as forças populares. Estas eram representadas pelas “camadas oprimidas da população”. Essas duas forças, que muitas vezes lutaram juntas pela conquista de um objetivo comum, tinham projetos de sociedade bastante distintos – em muitos casos antagônicos. A primeira queria apenas “o estabelecimento de um regime constitucional e as vantagens, liberdades e autonomia adquiridas pelo Brasil”. A segunda “enxergava na constituição que lhe era oferecida perspectivas de libertação econômica e social”. Continuou Caio Prado: “A posição das classes pobres na revolução da Independência é por isso radical ao extremo”.

 

Em outro trecho afirmou: “Estes (‘os nativistas’), contudo, se tinham um alvo comum – o combate à reação portuguesa – dividiam-se internamente em tendências distintas que refletem a posição própria na revolução da Independência das várias camadas sociais que o compunham. O partido que representava a classe abastada dos proprietários rurais e, como vimos, dominava na Assembléia Constituinte, era, natural, socialmente conservador (…) Mas ao lado dele figuravam os democratas radicais, que, representando as classes populares, aspiravam por reformas sociais profundas”. E concluiu: “a composição nacionalista do primeiro reinado (…) de um lado estão as classes abastadas, principalmente os grandes proprietários rurais (…) de outro, as classe populares”.

 

Segundo Caio Prado as massas populares foram derrotadas naquele processo: “Sim. Logrado foi o povo (…) vendo que tinha lutado para os outros”. A principal razão foi que as massas populares “não se encontravam politicamente maduras para fazerem prevalecer suas reivindicações; nem as condições objetivas do Brasil eram ainda favoráveis para sua libertação econômica e social.” Assim, “fez-se a Independência praticamente à revelia do povo”.

 

No Brasil do início do século XIX ainda não se poderia falar em classe social num sentido forte; ou seja, grupos sociais populares com alguma consciência de pertencimento de classe. Referindo-se aos escravos, escreveu: “Privados de todos os direitos, isolados nos grandes domínios rurais (…) e cercados de um meio que lhe era estranho, faltavam aos escravos brasileiros todos os elementos para se constituírem (…) fatores de vulto no equilíbrio político nacional. Só com o decorrer do tempo poderia a pressão de idênticas condições de vida transformar esta massa escrava numa classe politicamente ponderável, em outras palavras, transforma-la de classe em si noutra para si.”

 

Não apenas aos escravos faltavam os requisitos indispensáveis para formação de uma classe social no sentido exposto acima. Continuou ele: “Quanto à população livre das camadas médias e inferiores não atuavam sobre elas fatores capazes de darem coesão social e possibilidades de uma eficiente atuação política. Havia nela a maior disparidade de interesses, e mais do que classes nitidamente constituídas, formavam antes simples aglomerados de indivíduos”. Aqui ele expressou a mesma opinião de Marx sobre os camponeses parcelares franceses durante os movimentos revolucionários da primeira metade do século XIX.

 

Em “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte” Marx escreveu: "Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separam uma das outras e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e a sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas, na medida em que existe entre pequenos camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem organização política nessa medida não constituem uma classe (…) são incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome".

 

Se, de fato, existia uma simplificação das relações sociais durante os primeiros séculos da colonização, que nos permite em falar em “massas populares” de maneira quase indistinta e se, também, é verdade que inexistiam classes no sentido forte do termo – classe para si – não podemos afirmar que as classes (ainda que no sentido fraco – classe em si) também não existissem. Esta é uma conclusão que Caio Prado parece chegar em alguns momentos de sua obra.

 

Entre outras coisas, escreveu: “É assim extremamente simples a estrutura social da colônia no primeiro século e meio da colonização. Reduz-se, sem suma a duas classes: de um lado os proprietários rurais, a classe abastada dos senhores de engenho e fazenda; de outro a massa da população espúria dos trabalhadores do campo, escravos e semi-livres. Da simplicidade da infra-estrutura econômica (…) deriva a da estrutura social: a reduzida classe de proprietários, e a grande massa que trabalha e produz, explorada e oprimida. Há naturalmente no seio desta massa gradações, que assinalamos. Mas, elas não são contudo bastante profundas para se caracterizarem em situações radicalmente distintas. Trabalhadores escravos ou pseudo-livres; proprietários de pequenas glebas mais ou menos dependentes, ou simples rendeiros, todos em linhas gerais se equivalem. Vivem do seu salário, diretamente de suas produções ou do sustento que lhes concede o senhor; suas condições materiais de vida, sua classificação social é praticamente a mesma”.

 

A afirmação acima não me parece correta. Escravos, proprietários de pequenas glebas, assalariados dependentes não compõe uma única e mesma classe e não têm o mesmo status no mundo colonial e, principalmente, durante o Império. O escravo estava no último degrau da escala social que todos pretendiam se afastar, inclusive o negro escravizado. Mesmo as massas populares se dividiam em classes sociais.

 

Em Evolução Política do Brasil, Caio Prado Jr. dedicou grande parte de suas atenções às lutas populares no período regencial e início do II Reinado. Entre elas se destacavam a cabanagem, a balaiada, a revolução praieira e farroupilha. Logo no início de seu livro ele deixou expresso o seu grande objetivo. Para defini-lo utilizou-se de um trecho do prefácio da obra de Max Beer, História Geral do Socialismo: “há muito se faz sentir a necessidade de uma história que seja a glorificação das classes dirigentes” e concluiu o próprio Caio Prado: “traçar uma tal história é tudo quanto pensei fazer.”

 

Mais à frente esclareceu sua opção metodológica: “A Cabanagem do Pará (1833-36), a Balaiada do Maranhão (1838-41) e a Revolta Praieira de 1848 em Pernambuco – que são as principais revoluções populares da época – não passam, para a generalidade dos nossos historiadores, de fatos sem maior significação social, e que exprimem apenas explosão de ‘bestiais’ sentimentos e paixões das massas. Isto principalmente com relação às duas primeiras (…) É por isso, dado a importância primordial destas agitações para a compreensão da história política da época, julguei útil analisá-las com mais detalhes.”

 

Já foi observado por alguns autores que Caio Prado Jr., em geral, tendia a subestimar a luta dos escravos e as conseqüências sociais e políticas desse estado de guerra civil larvar que predominou durante o período colonial e imperial. Isso, no entanto, não significa dizer que ele ignorou completamente a resistência dos negros escravizados, pois não é verdade.

 

“A condição dos escravos, escreveu ele, é outra fonte de atritos. Não se julgue a normal e aparente quietação dos escravos (perturbada, aliás, pelas fugas, formação de quilombos, insurreições mesmo por vezes) fosse expressão de um conformismo total. É uma revolta constante que lavra surdamente entre eles, e que não se manifesta mais porque a comprime todo o peso e força organizada da ordem estabelecida”. No entanto é verdade que ele não tirou todas as conseqüências dessa importante constatação.

 

Diga-se a favor de Caio Prado que não existiam, naquela época, estudos exaustivos sobre as revoltas escravas no Brasil. A obra pioneira de Clóvis Moura, Rebeliões na Senzala, somente viria a público no final da década de 1950.

 

 

 

Formação do Brasil Contemporâneo

 

 

 

Quanto aos aspectos étnicos do nosso povo Caio Prado se rendeu ao esquema consagrado da integração das “três raças formadoras”. Um fato por demais óbvio para ser negado pelo autor marxista. Escreveu ele: “A mestiçagem, que é o signo sob o qual se forma a nação brasileira, e que sem dúvida o seu traço característico mais profundo e notável foi a verdadeira solução encontrada pela colonização portuguesa”.

 

Não é possível, também, deixar de sentir uma leve influência de Gilberto Freyre sobre sua principal obra Formação do Brasil Contemporâneo (1942). O sociólogo pernambucano havia lançado poucos anos antes o seu memorável Casa-Grande e Senzala (1933). Afirmou Caio Prado, seguindo o “mestre de Apicucos”, a “mestiçagem, signo sob o qual se formou a etnia brasileira, resulta da excepcional capacidade do português em se cruzar com outras raças (…) Teria contribuído para aquela aptidão o trato imemorial que as populações ocupantes do território lusitano tiveram com raças de compleição mais escura.”

 

Caio Prado, no entanto, apresentava uma pequena, e significativa, diferença de opinião em relação à Freyre. Afirmou ele, “muito mais importante, contudo, entre os fatores da mestiçagem brasileira, foi o modo com que se processou a emigração portuguesa para a colônia. O colono português emigra para o Brasil, em regra, individualmente (…) E daí se verem os colonos destituídos de mulheres brancas. Isto, e mais a facilidade dos cruzamentos com mulheres de outras raças, de posição social inferior e, portanto, submissas, estimulou fortemente e mesmo forçou o colono a ir procurar aí a satisfação de suas necessidades sexuais” e “as uniões mistas se tornam a regra.”

 

Assim, seria a forma particular pela qual se deu a colonização portuguesa na América que explicaria a mestiçagem. Ela não seria mais explicada, fundamentalmente, pela índole do colonizador português – um homem desprovido de preconceitos sociais e de cor.  Caio Prado estava correto, pois a colonização portuguesa na África, iniciada séculos depois, não produziu uma população miscigenada. Em alguns casos, a colonização lusitana produziu fenômenos muito próximos ao apartheid sul-africano.

 

Também não é possível deixar de notar os tributos que a obra pioneira de Caio Prado foi obrigado a pagar à ideologia elitista de seu tempo. Nenhum autor marxista esta isento de passar por esse processo de transição. Sem, por algum tempo, conviver com teorias e ideologias em decomposição.

 

Em Formação do Brasil contemporâneo ele chegou mesmo a se referir aos negros africanos e indígenas como “raças exóticas”, “povos de nível cultural ínfimo”, “povos bárbaros e semi-bárbaros”. Falava, por exemplo, do “baixo nível intelectual dos escravos” e afirmou que “a contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula”.

 

Certo espírito preconceituoso – ainda predominante no seu tempo – também pode ser detectado num longo parágrafo da mesma obra: “o que pesou muito mais na formação brasileira é o baixo nível destas massas escravizadas que constituirão a imensa maioria do país. No momento que nos ocupa, a situação era naturalmente muito mais grave. O tráfico africano se mantinha, ganhava volume, despejando ininterruptamente na colônia contingentes maciços de populações semi-bárbaras (…) Certas conseqüências serão mais salientes: assim o baixo teor moral nela reinante, que se verifica entre os outros sintomas de relaxação geral dos costumes, assinalada por todos os observadores contemporâneos, nacionais e estrangeiros. Bem como o baixo nível e ineficiência de do trabalho e da produção, entregues como estavam aos pretos boçais e índios apáticos”.

 

Em algumas passagens parece mesmo culpar o escravo e a escrava pela promiscuidade que reinava sob o manto da família patriarcal: “O sistema de vida a que dá lugar, a promiscuidade com os escravos, e escravos do mais baixo teor moral, as facilidades que proporciona às relações sexuais irregulares e desbragadas,a indisciplina que nela reina (…) tudo isto faz da casa-grande, antes uma escola de vício e desregramento (…) que de formação moral. A família perde aí inteiramente, ou quase, as suas virtudes; em vez de ser o que lhe concede razão moral básica de existência e que é de disciplinadora da vida sexual dos indivíduos, torna-se pelo contrário campo aberto e amplo para o mais desenfreado sexualismo”. Para Caio Prado, pelo menos nesta obra, a família deveria ter, necessariamente, “o grande papel de formador dos indivíduos e do seu caráter”. Não é possível deixar de notar nesta passagem a influência do idealismo e do moralismo aristocrático de Paulo Prado, autor de Retrato do Brasil.

 

Entretanto, em outros trechos ele nos ajuda a desvendar as razões mais profundas para as “vicissitudes morais” da maioria nosso povo. A principal dela é a existência da escravidão. Seria um erro atribuir a “indolência” como característica inata dos indígenas brasileiros, pois na “sua vida nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que conhece, e, sobretudo, cujo alcance compreende, o selvagem brasileiro é tão ativo como os indivíduos de qualquer outra raça.” Em outros trechos ele é ainda mais explícito: “O negro e o índio teriam tido certamente outro papel na formação brasileira, e papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido o rumo dado a colonização; se se tivesse procurado neles, ou aceito uma colaboração menos unilateral e mais largar que a do simples esforço físico.” A escravidão excluía “tudo que o negro ou índio poderiam ter trazido como valor positivo e construtor da cultura”.

 

Apesar dos limites que possam ter, podemos afirmar que os livros de Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Júnior representaram um salto de qualidade na historiografia brasileira. Por isso merecem um lugar destacado entre as obras fundamentais que nos ajudaram a entender mais e melhor o Brasil. Elas continuam sendo leituras obrigatórias para todos aqueles que se colocam a difícil e nobre tarefa de construir um país democrático, soberano e socialista.

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