Cartas de ausência 

Estou longe de casa e não sei o caminho de volta, por aqui,  só tem estradas, nenhuma pousada, nenhuma casa, algumas sombras, o resto: estradas. 

Foto: pxhere.com

O vestido branco ficou na estaca com as marcas da terra e do arame farpado, parece que o corpo saiu se rasgando. Afinal, só tinha o vestido, o resto é dedução. Enquanto isso, em alguma parte do mundo tomo café, escuto blues sem entender nada e me balanço como se conversasse comigo, mas a lembrança do vestido  pareceria bofetear o meu rosto. 

Estou longe de casa e não sei o caminho de volta, por aqui, só tem estradas, nenhuma pousada, nenhuma casa, algumas sombras, o resto: estradas. Desconheço todas, tem algumas que até me arrisco porque os percursos são mais  curtos. 

Daqui só posso te mandar cartas de ausência. Posso te mandar também poemas longos de Neruda, a objetividade de Benedetti e as poesias gozosas de Cida Pedrosa, mas certezas, não espere. 

A todo instante parece que as estradas estão de brincadeira, quando percebo, revejo as mesmas paisagens e tento refazer os caminhos. 

Como não estou em casa, não tenho como receber ninguém. Casa fechada não deve entrar sem  permissão.  

Devo chegar em casa, acredito que ainda tenha muita bagunça para organizar. As roseiras devem estar com sede. Talvez  tenha café e um pouco de açúcar, se faltar gás, a gente providencia  uma lenha e toma café numa xícara improvisada de extrato de tomate.  Devo chegar com algumas cicatrizes, mas de vestido novo. 

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O sofá era o mesmo

Salto alto, olhar atento, prancheta no colo, caneta na mão, mas um encontro semanal, sem café.  Mãos na cabeça, parece que diante dela sempre sou revistado.  Estava de mudança, naquele dia,  os móveis ainda não tinham canto definido, mas o sofá estava do mesmo jeito, não sofreu alterações. 

Nas minhas primeiras palavras  vi seus olhos arregalados, talvez invertemos um pouco os papéis, ela sempre diz que falo com o corpo, que sou caras e bocas, mas que palavras. 

Nossos encontros tem hora marcada. Queria falar mais, falo o que é possível, na esperança de reencontrar a esperança. Sabendo que nunca vou encontrar um manual de sobrevivência ou uma receitinha deliciosa para vida.  

Ela seria uma escritora dolorida, mas poderia ser cômica também, guardar tantas histórias, inclusive as minhas, fico imaginando como seria a narrativa bondosa e perversa de quem vai descobrindo os labirintos alheios.  

Mas naquele dia, foi de pouco sofá. A mudança exigia faxina, tinha que sair limpando. Deixar a casa com cheiro de flores  e florescida. Pegou o material de limpeza e entregou nas minhas mãos, cuspiu no chão como se demarcasse o tempo e a necessidade de arrumação.         

Ao sair exausto, ela sorriu,  como sempre faz a cada despedida.  Deu-me um abraço sem tocar meu corpo. Depois, entrei na primeira cafeteria, pedi um suco, observei a entrada e saída de sorrisos. Abrir Canto Geral, de Pablo Neruda. 

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